quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Outono nos Olivais



A escultura do Sam



Imagem: Intrusa

A Quinta Pedagógica (pelo olhar de uma Intrusa)





"ovas ou iscas?"

o burro dos olivais


Era um burro velho e manso, com umas enormes pestanas, que algum de nós se lembrou de baptizar de Celestino. Desde o dia em que o encontrámos passou a fazer parte das nossas tardes, talvez durante umas duas semanas, não mais. Mas duas semanas, naquela altura, naquela idade, naquele verão, era imenso tempo.

Um dia, no balanço que normalmente se fazia ao jantar lá em casa, acabei por referir que “estivemos a passear com um burro”, meio a medo de que disso me viessem a proibir, meio excitado por me atrever a contá-lo. Mas eles sorriram, achando graça a tanta imaginação. Tornou-se assim um lugar comum ao jantar, eles perguntando sobre o “e o burro, hoje”, e eu lá contando os últimos episódios. E depois eles entreolhavam-se, sorrindo. E lá fui desembrulhando a história, todos os dias um pouco. Confiava-lhes que o tínhamos encontrado num baldio, e identificava o lugar com rigor, ali perto de casa, sítio comum num bairro em construção. E todos os dias eles ficavam a saber um pouco mais do burro. Sabiam que se chamava Celestino e normalmente era já assim que me interrogavam no inicio da conversa, “então e o Celestino, está bem?”. E desenrolava-se mais um pouco daquela história, ouvida atentamente quando lhes contava como todos os dias o íamos buscar a uma estaca, num descampado de chelas, (onde anos mais tarde se montou a escola do 12º ano), e como ele já nos tinha ganho confiança, seguindo-nos, já nada renitente como da primeira vez. E perguntavam-me se ninguém achava estranho, andar assim com um burro em plena cidade. Eu não lhes percebia a estranheza mas sempre lhes ia confidenciando que por acaso naquele dia tivéramos de fugir a um polícia que nos chamava ao longe, e de como tínhamos conseguido esconder o Celestino por trás do prédio da drogaria. E lá iam escutando tudo com algum encanto, deliciando-se nos pormenores, no nexo que todas as descrições faziam, naquela história de um burro com um bando de miúdos numa cidade que todos os dias se prolongava um pouco mais. “E que come ele” perguntavam. Aí interrogava-me também, pois que nós pouco lhe dávamos, mas que com certeza o dono, o homem que o tinha preso lá na estaca, no baldio, havia de tratar dele, quando nós por lá o deixávamos ao fim da tarde. Por vezes a minha mãe achava-nos algum exagero já, “que também não é preciso andar com o frasco de mercurocromo atrás, que podem bem brincar sem essas coisas”. E eu lá lhe explicava que era para curar uma chagazinha que o Celestino tinha por baixo da perna esquerda. Acabava por condescender, já sorrindo com avisos de cuidado.

Naquele verão, todas as tardes a seguir à escola lá íamos buscar o Celestino, e com ele passávamos aquelas horas que se estendiam até ao lanche. Ele seguia-nos, já naturalmente, dando as mesmas voltas, quedando-se quando nós nos sentávamos em alguma escada, seguindo-nos as brincadeiras com a cabeça, e por ali ficava no ócio connosco, com aquele olhar meigo, tendo-nos como companheiros. Depois vinha o lanche, outras obrigações, e lá o íamos deixar preso à estaca de novo, já com saudades, inquietos pelo dia seguinte.

Uma noite viram-me tristonho, e já na sobremesa questionaram-me. “Foi o Celestino dizia-lhes, já lá não está. Tenho medo que tenha morrido”. E eles entreolharam-se, inquietos, sabendo-me magoado: “deixa estar, olha porque não passam a brincar com leões, ou veados, hás-de ver que hão-de encontrar outro bicho”. Nunca mais voltámos a ver o Celestino, aquele burro velho e meigo, e as conversas ao serão acabaram por deixar de o trazer e de perguntar por ele.

Ainda hoje me lembro dos seus olhos tristonhos, aquelas pestanas enormes, a mansidão com que matava as horas da tarde connosco. E ouvia os meus pais contaram aos amigos, aos meus tios, da imaginação com que eu durante dias a fio, trouxe o Celestino para as conversas do jantar. Nunca os contradisse, nem mesmo em adulto. Afinal, que importância teria ser fantasia ou realidade.

Hoje, quando por lá passo, já não há baldio nenhum, nem um bando de miúdos e um burro. Há apenas pressa … e o Celestino, quase que piscando o olho.
[este post foi publicado em 14.12.07 pelo Fulacunda e republicado hoje, depois de composto com a fotografia enviada pela Intrusa.]