quinta-feira, 26 de novembro de 2009

as festas de sábado à tarde

Não há muito a dizer sobre elas, já que aqui me escuso a evocar os tremores dos primeiros namoros que por elas se semeavam, que esses sim, poderiam facilmente escrevinhar largos capítulos de uma sequela sem fim. A rotina era quase sempre a mesma. Entravamos pelas festas adentro arrogados de valentões. Depois comíamos, bebíamos e dançávamos espaventosamente, sem que nenhum miúdo mais destemido nos interpelasse. Marcado o território retirávamos então em glória, foliões, deixando um rasto de ruído alarve. Eram assim as nossas pândegas de sábado à tarde, quando tínhamos a sorte de encontrar uma festa desabrigada. As tardes menos boas eram quando os mais velhos entravam pelas nossas festas adentro, arrogados de valentões, até delas saírem saciados, deixando atrás de si um rasto de ruído alarve.

por Fulacunda

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Intervalo para almoço


Telefono para casa. Para falar com a minha mãe. Apeteceu-me. Vou almoçar, antes disso fiz uma pausa, vim até ao Olivesaria, um sentimento de amizade invade-me sempre que aqui venho, amizade e história, a minha história, de repente lembrei-me da minha mãe, por onde parará?, ligo para casa. O atendedor de chamadas é o primeiro a chegar ao telefone. Ligo para o telemóvel. Estou a conduzir, meu filho, diz ela, não é urgente, é só para te dar um beijinho, respondo, para te dizer que te amo, penso de mim para mim, que preciso da minha árvore, o fim do século XX, que acabou, soube pelo JPT, ainda não me fez o homem-robot que antevi ser quando chegasse ao ano 2000.

Ocorrem-me sabores entretanto. A tortilha espanhola que a minha mãe fazia tão bem. A sopa de feijão vermelho com couve portuguesa. O empadão de carne, com a pele a estalar. O souflé de peixe. E, para lá dos sabores, o tempo. O que de mais importante me lembro é a sensação do tempo a abrir-se, a espraiar-se, a lentificar-se. Como este pequeno devaneio.
Ainda sou o mesmo, um tipo que chega ao momento de ir almoçar e que, enquanto fecha o expediente do serviço, se apercebe que, por maior romantismo que ponha na forma como olha o seu dia-a-dia, se tornou naquele burocrata que ridicularizava aos seus vinte anos. E que depois levanta a cabeça, como a avestruz, agarrando o gôle de ar que, durante todo o dia, fará a diferença. Como diz o , descubro uma nova e não catalogada forma de heroísmo, sobreviver à minha ideia juvenil de mundo. E é assim, com a cabeça levemente inclinada sobre o olival, que saio, estupidamente feliz, reizinho do meu mundo, para o lado de fora deste teatro onde quase nada do que é, parece.

domingo, 25 de outubro de 2009

A menina do cão do fiat



Não tivesse vindo cá abaixo buscar as compras que a minha mãe deixara no carro e provavelmente nem repararia naquela inscrição feita na parede do meu antigo prédio, na rua cidade João Belo. Estava noite, o que para além de dificultar a própria memória fotográfica também acrescentou algo de misterioso à mensagem que se ligou, invisivelmente, a mim, ao modo platónico como vivi a minha adolescência nos Olivais. Espero - para reconforto do anónimo apaixonado - que a rapariga do cão do fiat se tenha enternecido tanto com a mensagem como eu.
Não era o Amo-te Daniela, que tantas vezes encontramos grafitado ou desenhado nas paredes, sem um pingo de sensibilidade, de reserva, com aquele desvairio adolescente que faz com que pensemos que as pessoas a quem dizemos que amamos são nossa posse. Não, quem escreveu aquilo ama na sombra. Nem nunca se aproximou o suficiente do objecto da sua paixão. Se o tivesse feito, teria, num dia de sorte, ouvido o seu nome gritado de uma janela, de uma varanda, de um extremo da rua. Sempre se falou alto nos Olivais. Não, o amante é sibilino. Esconde-se, na noite, nas tardes, nas manhãs. Vê-a partir e regressar todos os dias, no seu fiat. Não é um wolksvagen, um opel, um citroen, um peugeot. É um fiat, italiano, temperamental, romântico. A menina do fiat faz parte de um universo sentimental, eivado de romantismo. Ao escrever isto, é como se eu mesmo estivesse a espiar esta história, esta pequena história de amor. Ele, o amante da menina do fiat, espera que ela vá passear o cão, acompanha-a. O que o revela na paisagem humana do bairro. Se o lugar ainda mantém as características daquele onde vivi a adolescência, há dois grandes tipos de pinga-amores que contribuem para o exarcebar amoroso que sempre caracterizou a vida entre oliveiras. Aqueles que, como eu - já me denunciei atrás, agora é tarde para desfazer- que, na sua timidez e acabrunhamento se escondem entre a sombra para ficar ali a ver as horas do seu tempo, do seu enamoramento. E os que - como por exemplo o Bafatá - tentariam arranjar logo um canídeo (comprassem-no, pedissem-no emprestado, atassem uma corda como coleira ao primeiro vadio que encontrassem), para poderem entabular uma conversa que, como um cerco, faria com que a menina do fiat passasse a ser mais uma letra no abecedário dos nossos rudolfos valentinos. Não, o amante inconfessável da menina do cão do fiat, treme só de pensar que a sua amada possa descobrir quem ele é, a sua identidade. No seu anonimato não pode no entanto deixar de lhe dizer que a ama. Ele quer que ela se sinta amada. Que saiba que é amada. É assim a imensa generosidade da platonia: consome-se num ardor, numa incandescência amorosa que não exige nada em troca, mas que tem de partilhar a sua existência apaixonada. E é como se sussurasse: menina, menina do cão, menina do fiat. Para que ela, todos os dias quando sair ou regressar a casa, possa saber que há alguém, tão doce que trata a rapariga por menina, que a ama sem pedir nada em troca. A quem basta apenas o desfiar da página de um romance vivo, feito de passeios com o cão ou voltas no fiat. É pouco? Não, é tudo. A menina do cão do fiat e o seu secreto amante estão à altura das mais altas tradições romanescas do bairro.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Da Jovialidade dos Cafés dos Olivais

Era uma vez, once upon a time, il était une fois, es war einmal, (em todas estas línguas aprendi a falar nos Olivais)...meia dúzia de cafés num bairro jovial...Eis alguns dos nomes de que me recordo dos famigerados cafés dos Olivais, lugares muito vivos de encontros, convívios, troca de olhares, murmúrios sobre este e aquela, centros de decisão de aventuras e caminhadas, cinemas e bulícios, revoluções e evoluções, teatros (Comuna) e concertos (Cascais Jazz, festa do Avante de outros tempos, concertos Gulbenkyan, Hot Club, ai, aquela Praça da Alegria de alegre memória jazística), praias e piscinas, festas em «casa de» e passeatas românticas no Seminário dos Olivais, pontos de reuniões múltiplas e, por vezes, centros de acesso a outras maravilhas, entre uma bica ou uma imperial com tremoços (ainda existem os tremoços?), um cigarro e um sorriso, gargalhadas de inverno e primavera, uma rápida leitura ao jornal...O «Tó», o «Cheira Mal» (este tinha também outros nomes, creio que também lhe chamavam «Rescumenga» e o «Zé»), o «Belo Horizonte», a «Nanu», o «Gordo» (nunca lá entrei mas sei que era famoso, sabe-se lá porquê...), o «Cabeça de Touro» do famigerado corvo, negro e atiradiço, de bico amarelo pronto à mordidela, o Sorraia (sempre muito queque), um outro café no largo do Sorraia e de que não me lembro o nome, mais tarde alargaram o espaço de baixo e fizeram esplanada fechada onde serviam um belo cozido à portuguesa, e, lá para o Norte, um tal Tábuas, onde entrei uma vez ou duas, aquilo era do clã do Norte...Todos eles passaram por várias fases de remodelação estrutural e humana. A fauna humana também variava de café para café, o Tó começou por ser «queque» e o «Rescumenga» menos «queque», mas, mais tarde equilibraram-se, ao bom estilo do bairro dos Olivais, bairro criado para todos os estilos e feitios e tipos de jovialidade. O «Tó» tinha a vantagem de possuir uma pequena papelaria onde comecei por comprar Tio Patinhas e folhas de cartolina para os Trabalhos Manuais, depois Tintins, postais de aniversário e cadernos espiralados e, mais tarde, o Sete, de boa memória, que me informava de tudo o que era concerto em Portugal, e o famigerado SG Filtro, que vim a abandonar em favor do Português Suave. O «Tó» era suave...O «Cheira Mal», menos suave, pululava de imperiais e tremoços e de muitas beatas no chão, mas tinha um ar alegre airoso no meio da confusão do futebol, por vezes, transmitido lá pelo televisor no alto (antes era a preto e branco, agora é todo preto e moderno e a cores, plasma, acho eu). Era menos suave, mas regurgitava vida. O Sorraia... bem, era o Sorraia, lugar de lanches familiares com aquela belíssima pastelaria e o bolo-rei do Natal, muito bom, ainda hoje por vezes o lá compro. O Nanu também balançava entre estilos de fauna, sempre muito animado e comprido até lá ao fundo, a começar pela esplanada, ali, a dar mesmo para o 21. Perto do Nanu, havia o «da dona Rosa», mais tasquinha, com uns belos caracóis de Verão...Ah, e por caracóis e caracoletas grelhadas evoco aqui o meu querido Palmeiras, lá para os Olivais Velho, zona linda e antiga, pequenina, com igreja e palmeira e tudo, onde ainda hoje vou, gosto da esplanada, do sol, da palmeira, dos caracóis em Julho e dos «secretos» no Outono, lá dentro...Pois do «Gordo» pouco poderei dizer, a não ser que era famoso, sabe-se lá porquê...um dia cheguei lá perto, aquilo era uma roda viva de gente a entrar e a sair, todos muito atarefados...O Belo Horizonte também me foi simpático, recordo umas tardes de Verão lá fora, na esplanada, a fauna também mista, via-se de tudo, mas era também algo suave...O Tábuas tinha nome, quando o clã do Norte falava do «Tábuas», a curiosidade minha, eu, do clã do Sul, despertava, era como se algo de esotérico lá se passasse...enfim, havia uma certa ideia de que o clã do Norte era uma espécie de elite aristocrática. O «cabeça de Touro» era onde iam «lanchar» outras famílias, um lanche mais virado ao caracol e à imperial do que aos requintados bolitos do Sorraia, havia sempre muitos homens de bigode e camisa deslavada, cheirava a cerveja entornada e a vinho tinto e não era bem lugar que se «frequentasse» até...se equilibrar também. Sofisticou-se. Já não há barris de vinho derramado e o corvo andará por outros céus. Tenho memória de uma certa manhã no «Cheira Mal», onde olhei olhos nos olhos os olhos mais azuis da minha vida, de uma tarde no Tó, a discutir a revolução de Abril, aos quinze anos, de uma noite na Nanu onde um grupo alegre, jovial, pois então, o meu, entrou só para comprar uma garrafa de whisky para continuar a noite, de um anoitecer na «D. Rosa» nos caracóis, depois da praia, com um livro do Alberto Caeiro cheio de areia nas mãos e uma espécie de desgarrada do «Guardador de Rebanhos», de um belo fim de tarde de Verão, no «Belo Horizonte», com um gupo animado, em alguém me fez um elogio amigável que me deixou feliz, de um jantar no «cabeça de Touro», já no tempo da sofisticação e do cozido à portuguesa, das manhãs em que nos encontrávamos e, indecisos, não sabíamos bem se continuaríamos a conversa e os cigarros pelos cafés ou em casa de alguém...enfim, outras eras, antes dos cafés virtuais em que toda a gente fala mas ninguém se vê. «Foste aoTó? Viste o João? A Ana apareceu?»...«Vai ter ao Nanu, depois falamos»...«Aparece no Cheira Mal logo à tarde»...«'Bora, vamos ao Belo Horizonte»...Hoje em dia é mais: «foste ao Olivesaria? «Já viste o que está no A ver O Mundo?»..«Ah, vai ao Bibliotecário da babel e verás!»..«Há muito que não vou aos Amigos de Alex, e tu, tens ido?»...As vozes ecoam agora no ciberespaço, mais do que nos cafés onde deixei de ir, com pena.
Muito poderia ainda dizer sobre os cafés dos Olivais, pelo menos, daqueles que melhor conheci, mas a ideia apanhou-me num relâmpago e resolvi colocar tudo isto já a preto e branco antes que a memória me leve as imagens e os nomes, as tardes e as noites, o cigarro, a imperial e a bica e os rostos de todos aqueles que conheci e vejo ainda ou deixei de ver, uns levados pela vida, outros pela morte e que saudades. Os donos também eram umas figuras, uns mais bem-humorados do que outros. Creio que o senhor António era o dono do Tó e o senhor Zé era o dono do «Cheira Mal»; dos outros, não me recordo ou nunca soube a quem pertenciam. Não faz mal. os cafés não se importam, mudam de dono e de nome como quem não quer a coisa, mas guardam a memória milimétrica das coisas nas paredes, no chão, no tecto, num algures espacial sem nome. Um dia destes, vou aos Olivais e farei uma ronda pelos cafés, só para ver como as coisas estão. Sei que já lá não te encontrarei, amigo, mas fica para a próxima...vida. Até já.
por Maria Correia

sábado, 15 de agosto de 2009

"Há sempre um olivalense à tua espera"‏

Sempre soubemos que partissemos para onde partissemos, aportassemos onde aportassemos, sempre se encontraria "alguém dos Olivais" - coisas de crescer naquela que, mito ou não, era dita a maior freguesia da Europa (e isto já quando o maior centro comercial do país era o Apolo 70). Enfim, não me quero afastar da questão, essa de fosse onde fosse "haver sempre um olivalense à tua espera". E logo um taco arranjado, uma companhia cruzada, um cigarro (de qualquer coisa) partilhado, no fundo uma segurança tribal. Vem-me isto a propósito do que me aconteceu há não muito, avançar até ao Lumbo, fronteiro à Ilha de Moçambique, abancar num panquê fantástico quase à sombra do embondeiro, e naquela margem índica encontrar, inesperadamente, dois legítimos olivalenses, um tal de kiko, aproximado aos da catió, confidenciou, e um outro zézé, dos betos da bolama, reclamou.

por: Bolama


segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Foi em 1965 que os meus pais tomaram a decisão: mudar da Avenida do Brasil para os Olivais Norte. Eu era muito pequeno, mas contaram-me do que então se falou. Que os Olivais eram longe, reclamava a minha avó, que quase não havia transportes para lá, e que o prédio – onde vivi até aos meus 27 anos – era uma corrente de ar de tão aberto. A favor, no entender dos meus pais, as casas serem enormes e nem por isso caras (havia o regime da habitação económica).
O facto é que a 20 de Junho de 1965 (sei a data de cor por ter sido na véspera de fazer três anos) eu, os meus dois irmãos mais velhos e os meus pais passámos a dormir num novo território, quase sem carros, com matagal a envolver ruelas. Mesmo à frente da minha casa, um poço fazia as delícias dos “ciganos” – nome a que baptizávamos todos os miúdos pobres que desafiavam a nossa segurança. Recordo-me bem desse poço ainda aberto, com duas tábuas de aspecto duvidoso (leia-se podres) em cima, e das lendas que o acompanhavam. Por entre as tábuas atirávamos pedras para tentar perceber a sua profundidade. Era fundo.
Já não sei dizer quando é que a CML decidiu “recuperar” o poço e as arcadas, vestígios de uma quinta secular dos Olivais. Éramos miúdos mas ficámos horrorizados com o resultado, de tal forma que – lembro-me – termos comentado que para terem feito aquilo mais valia terem deitado as “ruínas” abaixo.
Nao me parece que a nossa irritação tivesse a ver com uma consciência patrimonial, mas talvez com o facto de terem tirado magia ao nosso brinquedo.
Mas, adiante, com o tempo – e o fim das barracas que envolviam o bairro -, as ruínas cada vez foram mais um espaço nosso, dos putos que viviam nos prédios altos da Rua General Silva Freire. Era ali que escondíamos os maços de cigarros, nas heras que trepavam pelas arcadas, e em cima do tampo do poço – já devidamente cimentado – conversávamos sobre tudo e nada até altas horas.
Nessa altura já o capim dera lugar à relva, onde as árvores eram colocadas – a nosso ver – para estragar os nossos campos de futebol. Conclusão: à noite íamos com uma serra e cortávamo-las (a prova de que a ecologia era para nós uma ideia distante). Dias depois, novas eram plantadas e assim se fazia o jogo do rato e do gato.
Também as ruínas serviam as “forças de autoridade”, que ali se escondiam para tentarem fazer “refém” a nossa bola, uma vez que a nós dificilmente apanhavam. É que era proibido jogar à bola na relva, e por essa "perigosa transgressão" várias vezes nos levaram para a esquadra. Numa delas - não tínhamos mais do que 13, 14 anos -, fomos o caminho todo a insultar um polícia que tinha tirado a pistola do coldre para nos deter. Ele, o polícia, já nem sabia onde se meter, presumo (ou quero presumir) consciente do abuso que tinha acabado de cometer, talvez motivado pelo desespero de dias sem nos conseguir meter as mãos em cima. Um de nós, que se “esticou” mais nas queixas, ficou detido durante algumas horas na esquadra da Encarnação e teve que ser o pai a tirá-lo de lá.
Tantas histórias daquele lugar me enchem a memória. Os frutos vermelhos que arrancávamos dos arbustos e que comíamos como sendo o nosso “remédio”, as cenas de pedrada com os “charlôs” que viviam nos prédios brancos em cima dos nossos – e que por isso tinham logo a vantagem geográfica do lado deles – e, claro, as primeiras paixões vividas nos arredores daquele poço onde um dia alguém me iniciou no tabaco. Travei o cigarro todo para me fazer homem, apesar dos meus parcos 11 anos, deitei-me e vi as ruínas a girarem a mil à hora. Com aquela idade, já podia palmilhar o bairro todo - nas férias só ia a casa para comer e pirava-me rapidamente - sem que os meus pais se preocupassem. E se calhar boas razões teriam para isso.
Os anos foram passando e os disparates aumentando, especialmente com o advento do PREC. Criámos o MRLO (Movimento Revolucionário de Libertação dos Olivais), pichámos tudo o que era paredes com as siglas do movimento e era, claro, no poço que reuníamos o Comité Central. Vieram as primeiras bebedeiras, inauguradas em casa de um amigo cujos pais estavam para fora. Decidimos experimentar um pouco do líquido de cada garrafa que eles tinham na garrafeira e horas depois pensei que ia morrer. Mais tarde, as motos, e com elas o reencontro com as forças da autoridade, com as suas Casal Boss atrás de nós num novo jogo do gato e do rato.
Hoje, quando volto ao bairro - onde os meus pais ainda vivem - desconsola-me a total ausência de crianças a brincar na rua. Em cima da nossa relva, repousa há demasiados meses um estaleiro que dará origem a uma nova estação de Metro. Entendo a vantagem de tal coisa quando um dia esteja a funcionar, mas não deixo de me arrepiar com o inevitável bulício que irá trazer àquela zona, que ficou para a história como a forma mais pura do modelo corbusiano (saído da Carta de Atenas) alguma vez experimentado em Portugal.

enviado por: Pedro Prostes da Fonseca

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

A Junta de Freguesia de Santa Maria dos Olivais e o Instituto IDEIA, têm a honra de convidar sua Excelência para a inauguração da exposição "Bordados de Castelo Branco" por Isabel Moreira.
A artista, do nosso bairro, mostrará que a tradição e elegância será sempre compatível e actual.
Dia 10 de Agosto, pelas 19h00. Será servido um cocktail.
Casa da Cultura dos Olivais
Rua Conselheiro Mariano de Carvalho, 68 (Olivais Velho)
Recebido de:
Cláudia Monteiro
Gestora da Casa da Cultura dos Olivais

terça-feira, 4 de agosto de 2009

SESIMBRA














Aproveito o embalo imparável do Bolama e carimbo o verão com um “post” de fato de banho e chinelos.
Sempre que o verão reclama as primeiras imperiais, lembro-me invariavelmente de Sesimbra.
Dos 13 aos vinte e poucos anos, era lá que “descansava” da minha (in)actividade escolar. Aliás, sempre me esforcei bastante para que a vida de estudante não fosse demasiado absorvente, de modo a que os 4/5 meses de férias (conquista de Abril que todos muito apreciávamos) fossem suficientes para recuperar energias. Era de tal forma prolongada a nossa estadia por aquelas bandas que contribuíamos para o ferrolhar do verão, ajudando o velho banheiro Jacinto no final da época, a desmontar a praia e a transportar os toldos e cadeiras para o armazém onde repousavam no inverno.


No fim das aulas, a família mudava-se para Sesimbra e iniciava-se o ritual veraneante.
Mas não ia sozinho. Eram muitas as famílias dos Olivais (e de outras paragens também, mas essas não contavam) que o faziam.
Relembrando esses tempos verifico com curiosidade que apesar da distância geográfica o espírito dos Olivais permanecia.
Pela manhã, na praia do Jacinto, um antigo pescador convertido à terciarização, alvo constante da irreverência juvenil (expressão linda para descrever o que lhe fazíamos), iam chegando as famílias com os farnéis preparados para uma jornada completa de sol e mar. Quanto a nós, de chegada mais tardia, ocupávamo-nos em futeboladas ligeiras, campeonatos de frisbee, caça submarina, cartadas e tudo o mais que se faz e não faz, na idade em que o tempo não tem tempo (com “tiradas” destas ainda me arrisco a ser convidado para ghost writer do nosso primeiro ministro quando este resolver escrever as suas Memórias do Cárcere...).
A propósito de caça submarina, recordo um episódio em que andávamos eu e outros oliveiras, perscrutando de arma em riste os mares sesimbrenses em busca de incautos linguados ou chocos distraídos. Naquele dia porém, os marinhos estavam particularmente astutos e não lhes parecia boa ideia passar do estado molhado para o estado grelhado. Decidimos então deslocar-nos para junto das rochas na expectativa de “convencer” algum polvo simpático que por lá andasse dos méritos da vida em terra firme. Debalde…
Um de nós, mais incomodado com o insucesso da pescaria, encontrou, numa subida à superfície para respirar, a solução para a sua frustração.
(façamos uma pausa na nossa empenhada militância em defesa dos animais – não comestíveis, claro…)
Uma pensativa gaivota descansava pacatamente numa rocha quando um arpão de espingarda de caça submarina a atravessou e…

À noite, vivida sempre em bando, “vadiagem” pelas ruas e cafés, como no bairro. Bastante activa e numerosa, era a representação dos Olivais na Confraria do Agrião. Antes da fase “encartada”, contávamos com os prestimosos serviços da empresa de camionagem Covas & Filhos para as nossas deslocações, das poucas que não foi integrada na Roubalheira Nacional, perdão Rodoviária Nacional.

Por lá paravam muitos Bolamas, desde os manos Mateus (disseram-me que são desenhadores num gabinete de arquitectos na Falagueira, mas não confirmei…) até à família “Maracangalha” (sim, também tínhamos amigos cujo pai tinha a sua assinatura nas notas do escudo), passando pelos irmãos Lemos (a um deles, não lhe “perdoo” ter-me iniciados nas visitas à Quinta das Tabuletas, uma semana depois de termos estado juntos um fim de semana em Sesimbra) Lembro-me sempre dele quando oiço dizer que mais vale ser rei por um dia que príncipe a vida toda…. Recordo com estima a família Serôdio, Novos Redondos de boa cepa, com quem partilhei quase todo o meu percurso sesimbrense, e de quem tenho muito boas recordações. Foram muitos aliás, os que partilharam as minhas estórias sesimbrenses e a quem aqui poderia fazer referência.

Da banda sonora destes dias recordo por exemplo os Stones no álbum Tattoo You ou o Patrick Hernandez quando dizia que tinha “nascido para estar vivo”, pensamento que nem a Lili Caneças desdenharia.
por Xai-Xai

Têm visto o Ambrósio?‏

"blue Va Gino was here"


por Bolama

PRÉDIOS NOMEADOS






















Esta é uma velha tradição, a da nomeação dos prédios, uma topografia toponímica que foi caindo em desuso. Nos Olivais escassearam estas imposições, algo que presumo normal numa urbanização cujos lotes se sucederam. Os nomes, tardo-imperiais, ficaram-se pelas ruas.

Por Bolama

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Olivesaria

Estou no campo, lá pela serra da Lousã, ou assim me parece, se calhar perdido. Há dezoito anos, dizem-me, e confirma-mo o tamanho, o brilho, a esperança e a quase-certeza do agora-já-não-bebé que então visitei ... há dezoito anos que aqui não venho. Um dos meus incondicionais, idiossincrático claro, por isso mesmo meu incondicional, até ao Lar se lá chegarmos, já foi dormir, fugido, se calhar titubeante, deste luar apaziguador. Lá dentro repousam, profundas já, as três famílias com que nos rodeamos. Ficamos dois, a ele não visito há dezoito anos, e repito-me. Ele nunca me visitou, e denuncio-o. Quase manhã alta e estamos ao tal luar. Enquanto fala lembro o que com ele aprendi, sem que ele soubesse ou se apercebesse, ou se calhar percebendo como se não desse por isso, um tal de Moebius, o Loustal, e outras coisas mais, mas acima de tudo uma placidez antecâmara de uma varanda que terá feito pequena-história, a da intimidade de homens. Estamos ali, eu agora quarenta-e-cinco, preciso de lembrar, ele ainda mais lamento ter que dizer, há duas décadas ou mais que nem grande coisa entre-nós, ou alguma vez terá havido?, os nossos miúdos conheceram-se hoje, as nossas mulheres (e que belas mulheres nos calharam em sorte, benção do destino?, destino de olivalense?) apenas agora a encontrarem-se, ou tal tacteando, num "afinal?!, ela é assim tanto ...?", nós há duas décadas ou mais que nem grande coisa, e de súbito, naquele luar de campo, está ele a chorar a rir e também eu, lágrimas face abaixo, coisa em mim de há tantos anos, não sei ele, imagino que também, quero imaginar que também, comporá a imagem do momento, mas em mim assim mesmo, há anos que apenas metáfora me era, e eu ali na serra, na casa do meu pampan, a chorar a rir, lágrimas abaixo, às tantas da manhá.

É isto o meu Olivesaria



By Bolama

Captei na página Facebook do "Branca Lucas"

- sim, há Olival nas redes sociais, e mui activo - esta fantástica homenagem ao Aventino Teixeira, coisa da autoria de um outro olivalense já aqui referido, o grande Sam.





























By Bolama

Nada resiste à erosão do-que-vem-aí, da acreditada melhoria

Os Viveiros não só se transformaram em Escola Secundária Eça de Queirós (com s) como estão agora a ser moldados desta forma.

Pelo menos ficará, por enquanto, o velho muro, local de namoro, agrupamentos proto-selváticos, montra de motos e arreganhos, e - claro - de aquisição de haxixe, então dito "produto" ou "brunhol", comercializado às resmas de "pintores". Logo atrás o café (muito atascado, e com mercearia adjacente - vera cantina colonial) do Sô Álvaro, local de flippers e de iniciação aos "submarinos", já feneceu. Quanto ao muro, a julgar pelas inscrições fronteiras, manterá alguma vida.





























By Bolama

Não me ocorre grande prosa, para quê empacotar a evidência histórica?

Quantos olivalenses e adjacentes se adaptaram aos volantes nas mãos dos instrutores da Apolo, ali à Rua Cidade de Cabinda?


























By Bolama

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Venha de lá esse verão, veremos nele a nossa vida

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sexta-feira, 17 de julho de 2009

Olhar o rio

Sinto-me muitas vezes um privilegiado por viver numa cidade que tem, mesmo à mão de semear, um rio como o Tejo . Para mim um dia, mesmo o pior, reabilita-se com um passeio junto ao rio ou numa daquelas esplanadas que a cidade inventou para o admirar. O Adamastor, o Noobai, a Esplanada da Graça, as Docas, Belém, Terreiro do Paço, Jardins do Tabaco e das Descobertas, o terraço do Hotel do Bairro Alto, Cacilhas, são apenas alguns dos oráculos da minha devoção. Gosto também do passeio pela marginal até Cascais. Desde a adolescência, ainda no carro-família, com os meus irmãos, lembro-me da face ainda marcada pelo sal e o vento a bater, a refrescar-nos. É-me renovadamente estranha a imagem dos barcos a balouçarem na ondulação ténue. Parecem-me ilhas solitárias ali penduradas no território líquido. Imagino sempre, no instante em que este relance de paisagem se atravessa no olhar, que vou numa destas pequenas embarcações. Amo a noite sobre a água, o cheiro da maresia, o barulho das ondas. Não sei bem porquê. Nunca fui grande nadador, nunca velejei. Nem posso colocar na minha carta de navegação - por mais prazer que me tenham dado - as horas que gastei nas viagens diárias de cacilheiro que fazia quando morei do outro lado do rio,. Desde há uns anos que todas as casas onde moro têm, por mais pequeno que seja, um altar onde me entrego a esta sedução pelo Rio Tejo. O mais engraçado é que quase nunca dei pelo rio nos Olivais e também o tinha sempre na minha varanda, no lad0 esquerdo, ali para os lados do Ralis, no enfiamento da ponte Vasco da Gama. Nos Olivais vivi muito e durante bastante tempo. Não é dele no entanto este delírio pelo rio.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Grande Tuga das Neves


Quando eu era miúdo tinha muitas coisas como certas. Uma delas era a chegada no dia dos meus anos de um postal de Elvas, do avó Figueira, que começava invariávelmente por um Salvé, e acabava, nos primeiros anos, numa nota vermelha de cinquenta paus e depois, em anos mais avançados, numa azul, uma centenária, como lhe chamava. Devo confessar que sempre dei melhor serventia às notas do que àquele Salvé, que associava sempre a coisa antiga, adequada por isso ao que eu esperava do meu avô Francisco António. Há pouco no entanto, à procura de uma foto de um tuga célebre, grande mandarim das neves, descendo implacavelmente com a sua companheira e com o Barão a grande descida de la Sierra, percebi que estas palavras antigas ganharam algum significado com o peso do tempo. Salvar o dia, e assim, salvando cada dia, estaremos também mais próximos de salvar também a vida dos que queremos, dos que nos são queridos, dos nossos amigos. Não deixa de ser paradoxal que eu me predisponha a saudar um amigo com um salvé precisamente na altura em que a curva da idade me afastou totalmente da ideia de salvação. Que se lixe! O que nos salva, o que nos salva hoje, e já nos salvava à trinta e poucos anos quando nos conhecemos, é também a amizade, a presença, do outro lado da esquina, do outro lado do blogue, do facebok, do telefone, onde for. Muitas vezes quando olho para as páginas paradas deste blogue, vejo as rotativas da vida a andar de trás para a frente - que é para onde elas devem andar quando querem ser capazes de escrever sobre a nossa vida - e dou-me por muito feliz por poder ter o privilégio de brindar a um amigo, de brindar num amigo toda a festa que é viver, construir, reconstruir, fazer de novo.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Facebroche


ESPIONAGEM


domingo, 12 de julho de 2009

FANTASMAS


este blog pode estar moribundo, mas...

terça-feira, 9 de junho de 2009



flores de oliveira, vindas daqui.


© nuno fonseca

as maquetas...
... que um olivalense encontrou!!!

quarta-feira, 13 de maio de 2009

as maquetas ...

... que um olivalense encontrou

domingo, 10 de maio de 2009

uma exposição na Biblioteca








quarta-feira, 6 de maio de 2009

quinta-feira, 23 de abril de 2009

por Jacinto Lucas Pires


“Morreu o coronel Aventino Teixeira.” “Morreu o Aventino.” Lê-se e não se percebe, claro. Frases absurdas, onde sujeito e predicado não batem certo. E, não, não é só por nos parecer sempre injusta a morte de um amigo. É que o Aventino era mesmo diferente. Vejo-o na sua magreza de décadas, com aquele bigode mítico, o copo de uísque, e as palavras saindo, velozes, ferozes (e no entanto estranhamente calmas), de uma boca escondida; ideias, personagens, anedotas, citações, tudo baralhado num caldeirão genial. O Aventino seria o “militar do 25 de Abril e do PREC” de que os jornais falaram no dia da sua morte, mas era também, para lá disso, o caso raro de uma pessoa que morava no presente do indicativo. Alguém que, desconfiando das posteridades, apostava tudo no aqui-e-agora, sempre sem cobrar favores ao tempo que passou, sempre com o humor de quem ama a vida a todo o momento. Por isso, pensá-lo assim em modo pretérito surge, mais do que como uma violência, como um erro, um terrível erro de concordância. “Morreu o Aventino.” Que frase mais sem nexo, caramba.Um homem que não era dos dias de hoje, é certo; exactamente o oposto do formatado-engravatado da nossa indiferença, ele que terá sido um dos fundadores do “politicamente incorrecto” português. E, também, é verdade, alguém a quem não era indiferente a memória, na qualidade dupla de personagem e de narrador. Pelo contrário, trata-se do exemplo refrescante de um pensador sem cátedra nem sistema que “fazia História” pela via pacífica de um “fazer histórias”.Conheci-o como amigo dos meus pais, enquanto visita lá de casa, a visita dos jantares mais tardios e sonoros. Para a criança que eu era, o Aventino era todo um espectáculo. Uma linguagem fascinante, que misturava gíria proibida e culta invenção, uns olhos de brilho malandro, e um tu-cá-tu-lá comigo que eu recebia como uma honra. Desde então me habituei a admirar as tiradas fantásticas daquele espírito inédito e inimitável. Descrevê-lo é, pois, um exercício de literatura dos mais utópicos. A frase conhecida afirma que era o “mais civil dos militares”, mas a verdade é que ele era também o “mais à paisana dos civis”. Uma espécie única de subversivo sentimental, conspirador transparentíssimo, revolucionário sem nostalgia, manso boémio, conversador de horas extraordinárias. Às vezes, para o provocar, eu pegava na personagem de uma canção do Vitorino e chamava-lhe Coronel Sensível. Mas, coisa rara, ele aí levava a sério e dizia que não, não, ele não era esse. E depois ria-se, “Coronel Sensível...”Fará muita falta a sua alegria crítica, a sua alfinetada permanente, a sua graça. Lembrando isso, tentemos sorrir, apesar de tudo. Se houver céu, o nosso coronel já arrastou o São Pedro para um Procópio improvisado numa qualquer nuvem mais escondida, tenho a certeza. E, se não houver nada, o Aventino já tratou de inventar alguma coisa, não haja dúvidas.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

ASSÉDIO


Aurindo nas fuças o vento frio
Sacudi, brusco, do hirsuto pêlo
Geadas matinais à beira rio
Vê Fauno a Ninfa que antes de sê-lo
Era sua amante: Mitologia.


O Sátiro persegue, pertinaz
A donzela ao léu e fugidia,
“Anda, corre, apanha-me se és capaz!...”

Assim nasce o mito do assédio
Do pobre Pé-de-Cabro à moçoila
Homem velho ou novo não tem remédio:
É franco, vai em frente, não espera
Que a Ninfa seja filha da papoila.



Coronel Aventino Teixeira, 1932-2009



terça-feira, 24 de março de 2009

Na frente ocidental nada de novo

"Eu continuo a acreditar nesse mundo impossível, sem ódio, sem rancor, sem ciúme, sem morte, sem capitalismo, sem diferenças sociais nem raciais, sem armas, onde o amor ao próximo é possível. "




De repente duas circunstâncias destrançaram-se e deram-me um pequeno espaço para vir à blogosfera. Penso em ir ao meu blogue. Mas depois algo me trouxe ao Olivesaria. Acho que foi, como à Maria Correia - que belo texto! - esta Primavera aos bocados. Bocado lua, estrela, cometa, bocado noite amena, azul tranquila, bocado vontade de fazer amor, de destapar a pele, de espreguiçar o corpo, bocado luz sobre a estátua do Pessoa ali na Brasileira, bocado cámones a descerem e a subirem a Rua Garret. Ou, para voltarmos novamente ao bairro, bocado manhã ensolarada no antigo café do tó, já este sábado, bocado desejo de voltar à escrita, à partilha, aqui.




Olho a imensa bondade que se despreende desta crença num mundo onde o amor ao próximo é possível e dou por mim a fazer contas àquilo em que (não) acredito e a perceber que a idade agudizou um problema que sempre esteve na minha relação com o mundo: a minha razão anda vezes demais desavinda com a minha emoção. E como os meus pensamentos não conseguem fazer as pazes com o mundo - é uma zanga que o tempo aprofunda - cresce dentro de mim um libertário, um anarquista intransigente, quase panfletário. Também, porque ao mesmo tempo sinto a necessidade - como se fosse uma sede, uma fome - de me pacificar interiormente, arranjei um estratagema, ou uma estratégia, talvez um truque: proibi a minha vida de (des) acreditar. De (des) esperar.




Não acredito mais. Esse é o tributo que a minha paixão, a minha necessidade de me apaixonar, de viver apaixonadamente, paga à minha razão. Mas o meu pensamento também tem contas a prestar à minha necessidade de me emocionar. Proibi-o, mais à minha linguagem, de expressar a minha descrença. E arranjei mais uma estratégia, um estratagema, sem dúvida, um truque: criei um lugar dentro da minha memória, e a minha memória é um pedaço do meu corpo, onde sonho com um "mundo sem ódio, sem rancor, sem ciúme, sem morte, sem capitalismo, sem diferenças sociais nem raciais, sem armas, onde o amor ao próximo é possível".
Há uma coisa que o tempo, a idade - essa maldita que tanto nos rouba de modo irremediável -nos devolve: o sonho, como acção de re-existência. Não apenas o sonho, o que resulta da acção de sonharmos mas o próprio sonhar enquanto acto, gesto, atitude. O sonhar enquanto tempo, a duração, o tempo que dura o tempo em que estamos de olhos virados para as nossas paisagens interiores. O sonho não é uma mera rima fácil do cançonetismo kitsch. É uma fabulosa actividade física, psíquica. Sonhamos sem nenhuma justificação. Apenas para alimentarmos os nossos tecidos moleculares, a nossa estrutura atómica. Para não sermos destruídos pela nossa incredulidade crescente.
Olhem a pessoa que sonha enquanto sonha: o mundo está em agitação permanente, sempre a vender-nos a sua urgência, a sua prepotência, parece impossível afastarmo-nos dele, libertarmo-nos do estado de vígilia, senão para aquele desligamento obrigatório, diário, a que a máquina nos obriga, o sono. No entanto esta pessoa suspende esta arrogância mundial e avança no pequeno teatro do mundo que é a sua vida e procura um lugar onde o seu corpo físico se possa desligar momentaneamente do que o cerca. Procura uma cadeira, um sofá, uma cama, uma pedra do passeio, um bocado de relva. Senta-se, ou deita-se ou recosta-se. Esta pessoa que sonha, que se entrega assim ao acto de sonhar não sabe que é uma pequena heroina. Está tão habituada a fazê-lo que nem se dá conta de que milhões e milhões de pessoas já não conseguem sonhar senão quando em estado inconsciente, no repouso de uma sesta, de um sono. É um breve momento. Fecha os olhos ligando-se ao enorme banco de imagens que, frame a frame, cabe numa vida. Depois, mais para a frente, há-de abrir os olhos e, sem se dar conta, já não é o mesmo homem ou a mesma mulher. Levanta-se, caminha por entre os prédios, por uma frente ocidental onde nada de novo acontece, mas já não é nem a mesma mulher nem o mesmo homem.
Também nós. Também nós somos o que sonhamos, as nossas imagens anteriores. O tempo que dedicamos a constituir, a partilhar imagens. Em pixels ou não. As palavras são imagens de um pensamento articulado. Aqui estamos nós em comum porque temos as mesmas imagens na cabeça: um grupo de adolescentes de calças surradas a sairem dos prédios, a colorirem as ruas, a darem vez e razão à relva verde, à sombra da tarde. Isso não foi ontem, nem antes, é hoje, é agora, no momento em que fecho os olhos e enalteço a minha molécula que saúda o verde, a primavera. Como espero o seja ainda depois e amanhã, quando este prazer de correr no parque se estender àquele que espera de mim um incentivo, um olhar, um exemplo. É por isso que volto, com ele pela mão, uma vez mais a esta frente ocidental onde nada de novo surge. E que me comovo quando sinto entre os dedos os seus dedos e dentro deles as imagens que circulam - desde a play station portátil até este Vale do Silêncio - livres entre nós.

quinta-feira, 12 de março de 2009

YOU CAN'T ALWAYS GET WHAT YOU WANT

De: Maria Correia
Hoje passei pelos Olivais. Nada de novo, na frente ocidental, com excepção da grande muralha de betão que me parece finalmente completamente construída, enorme, massa, volume, sem respiração e cortando a respiração do bairro. Sou actualmente uma mera visitante esporádica do bairro, sinto-o por vezes mais aqui pela olivesaria--as recordações são vivas--do que quando por lá passo. Ontem passei também pela Olivesaria, como passara há uns dias, há umas semanas; também nada de novo na frente ocidental. Apenas um silêncio com nomes, num espaço que já vi mais movimentado. Hoje, ao passar pelos Olivais, e como é Primavera, lembrei-me como, na minha adolescência e na minha juventude, ( em anos, não em espírito) aqueles relvados e pracetas, aquelas escadas e escadinhas, nesta altura do ano, se encontravam cheios de gente, muitos jovens, sentados na relva, caminhando pelo bairro em direcção à casa de um amigo qualquer, calças de ganga velhinhas porque eram velhas e não por serem compradas rasgadas de propósito nas lojas da moda dos centros comerciais, camisas de xadrez, peças de roupa que na altura ainda não se chamavam bem t-shirts, belos jovens e belas jovens de cabelos compridos e contestação ao canto da boca, cigarros de erva sonhadores nas mãos que, na altura, tocavam o céu azul, um céu onde o amor eram pássaros azuis num campo verde no alto da madrugada. Ocorreu-me automaticamente a frase precisa e incisiva do Mick Jagger, YOU CAN'T ALWAYS GET WHAT YOU WANT, cantada há trinta anos e continuada a cantar-se por todo o mundo ainda hoje, mas penso que mais baixo, desde que o Lawrence Kasdan a imprimiu para sempre como tema de fundo no filme carismático sobre a perda da inocência da era hippie e o começo da era yuppie, mais egoísta e virada para valores exactamente contrários aos da geração anterior. YOU CAN'T ALWAYS GET WHAT YOU WANT. O Alex suicidou-se e Kasdan dá a entender subliminarmente que o terá feito devido à «insatisfaction», a mesma coisa que o Jagger dizia no «I can't get no...», ou seja, uma mal aise, uma insatisfação criada no fundo do ser devido ao confronto com a realidade do mundo do capitalismo duro e cru, em que já não havia lugar para a tal inocência que acreditava ser possível viver-se de um outro modo. YOU CAN'T ALWAYS GET WHAT YOU WANT. É bem verdade que alguns dos valores dessa geração da INOCÊNCIA, no sentido mais puro do Homem natural rousseauniano, foram coados para a sociedade actual, a preocupação com a natureza, (mas depois o desprezo pelo protocolo de Kioto por parte das grandes potências) a ecologia ( mas depois constroem-se muralhas de betão), o misticismo (mas depois surgem-nos para aí bruxos capitalistas a torto e a direito), as organizações de solidariedade social, as ONG's (mas continuamos a ver metade do mundo a morrer de fome), o respeito e o amor pelo nosso semelhante (mas depois surgem guerras e guantánamos e gangs de bairro, cada vez mais violentos)...YOU CAN'T ALWAYS GET WHAT YOU WANT...NO, YOU CAN'T ALWAYS GET WHAT YOU WANT...No fundo, a Idade da Inocência ( outro grande filme, mas de Scorsese), perdeu-se. Perdeu-se? Eu continuo a acreditar nesse mundo impossível, sem ódio, sem rancor, sem ciúme, sem morte, sem capitalismo, sem diferenças sociais nem raciais, sem armas, onde o amor ao próximo é possível. Continuo a acreditar contra tudo e contra todos os que dizem que não, que blabla, que isso é uma utopia, que não existe, que é coisa de miúdos barbudos de uma geração perdida, que se drogava e andava de terra em terra, que escreveu livros e poesia e temas musicais eternos, que vivia em comunidades e que depois chegou à conclusão que isso não era possível, que o Homem é um ser egoísta por natureza, guerreiro por natureza, que mata por prazer, enfim, tudo o que diz para aí e se tenta inculcar no espirito das criancinhas enquanto as abafam com computadores e telemóveis e bonecos robô que ladram como os cães verdadeiros, ou fingem que ladram. YOU CAN'T ALWAYS GET WHAT YOU WANT. O Alex suicidou-se pois não foi capaz de aguentar a pressão do malaise d'être e todos nós conhecemos, ou quase todos, um Alex. Mas a morte de Alex não foi em vão nem impune. Despoletou todo um antigo espírito solidário entre aquele grupo de yupies que também sentia o mesmo mal-estar, afinal, do género: «Deus morreu, Marx também e eu próprio não me sinto lá muito bem. YOU CAN'T ALWAYS GET WHAT YOU WANT.
Hoje, ao passar pelos Olivais lembrei-me disso tudo. A canção também dizia que, se procurarmos bem , «you will get what you need».

Será o «what you need» tão importante na vida como o WHAT YOU WANT?
Maria Correia

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Inauguração

Sua Excelência o Presidente da República,
Almirante Américo Thomaz,
descerrando a lápide onde se perpetua o nascimento
da nova urbanização.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

ENTRADA SUDOESTE


construção da rotunda do relógio




enchendo de "gota" as viaturas





trânsito infernal



entrada e saída

DINOSSAUROS

bute lá...
cuidado com o "trinca"!

sábado, 7 de fevereiro de 2009

É P'RÁ MEMÓRIA

através do nosso fundador Bolama, recebemos um alargado conjunto de fotografias da memória olivalense que lhe foi enviado por Humberto Lopes e que julgamos pertencer ao arquivo municipal. as fotografias encontravam-se organizadas por Nuno Braga em powerpoint.
nos próximos tempos iremos apresentar, senão todas, certamente a grande maioria.
que fique pois registado, o agradecimento aos três.

na eventualidade de alguém pretender o ficheiro completo, fá-lo-emos chegar via e-mail após solicitação para o nosso contacto olivamos@hotmail.com
como sempre e para o mesmo endereço, aguardamos colaborações e sugestões.
a equipa de manutenção

OLIVE GROVE COUNTRY CLUB

[as oliveiras foram substituídas pelo hospital do SAMS...]

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Chove e cá dentro as nossas moléculas

Falta carne, disse o Fulacunda ao terminar. E eu já não sei se ela nos falta, ou se nos sobra. Às vezes, nesta dimensão de homem-écran reparo que, sem o constrangimento da carne poderia viver mil anos assim, ligado ao espelho mágico, primeiro da tv, depois do portátil. Ou até da minha janela. Principalmente quando chove e a vida lá fora fica mais forte, mais acentuada. Não fosse a carne, as suas necessidades e exigências - que não apenas as maçãs que outrora colocávamos nos bolsos para aguentar até ao lanche - poderíamos viver mil anos assim. Alimentados por uma sonda, por um chip. Um dia, com o hábito e a persistência, da mesma forma que fomos evoluindo no circo das espécies, talvez passemos ao degrau seguinte, o homo sapiens máquina. Não sei, não sabemos. Sei apenas, como o Fula, que falta - ou sobra - carne na nossa vida. É por isso que eu gosto do frio, do frio que por aí anda. Ele atiça a carne que há em nós, agudiza-a, urgencia-a até. Não quero ser revivalista. Escrevo cuidadosamente porque não quero ser revivalista. Eu sou do presente e quando não o puder ser, porque às vezes esta carne não nos deixa ser do presente, serei do futuro. Nunca do passado. Não há nada no passado que me arraste. Ou que me guie. Tenho por isso pudor na palavra e no verbo revivalista. Até porque aquilo que posso dizer a seguir é, nesse domínio, ambíguo: tenho quarenta e seis anos e deles trinta e cinco foram-no na convicção exuberante da presença, e a presença é essa apoteose da carne. Só os dez últimos foram consumidos no festival inacreditável do eu-digital, os sites, os blogues, os chats. Mudaram muito em mim estes dez anos, claro. Mudaram tanto que por vezes tenho dificuldade em conectar-me comigo mesmo. Mas a minha pele, sinto-o, ainda é de um homem do aqui e agora.
Ontem estávamos em casa do Xai-Xai para ver as fotos da última excursão, a Sevilha. Antes do mais, o que vou a dizer não tem nada a ver com os pixels: acho até que o digital nos trata bem da vaidade. Nota-se que já não somos os que tocavam às campainhas das portas, somos assumidamente os dos nicknames, mas ou porque nos habituámos às falhas capilares, ou porque elas convivem melhor connosco, o digital trata-nos com delicadeza os avanços do tempo.
Estávamos portanto em casa do Xai-Xai. O Fula, o Benguela, eu, todos em duplo, poupam-se os nomes. E agora ao ler este texto do Fula é ainda mais claro o que senti quando lá estávamos: que entre o principio dos anos sessenta, quando nascemos, e o fim da primeira década do milénio, onde estamos, o paradigma da relação alterou-se completamente, deixando de estar sujeito aos constrangimentos da presença. Não é preciso avançar na tese deste argumento, todos nós conhecemos por dentro esta realidade. A minha mãe tornou-se há dias uma mãe skype e hoje já reza o terço com os seus irmãos pela internet. As relações ampliam-se na multiplicação de aquis e agoras que podem estar presentes num único acto comunicacional.
Falta, ou sobra, carne, dependendo do ponte vista. Aos nossos filhos, por exemplo, já sobra a carne que a nós, nos falta. Era aqui que eu temia a possível ambiguidade da palavra revivalista: sinto necessidade de ser leal à minha molécula, aos meus átomos que, como já escrevi, foram criados na apoteose da presença. As minhas moléculas - o meu corpo atómico- estão sempre em mutação, os tecidos degeneram-se, regeneram-se, mas não o fazem todos por igual. Ainda devo ter dentro de mim algumas moléculas que assistiram comigo à descida de Neil Amstrong nos territórios lunares. Não serão muitas, mas existem. Por isso, sem nenhum revivalismo, confesso esta necessidade de ser leal aos milhões de moléculas que comigo se construíram no face a face, no momento único, intransitivo, da relação. Naquela sala do Xai-Xai percebi que um grupo pode ser isso: a partilha dessa lealdade às nossas moléculas, àquelas que viram a luz do dia quando aquilo que valorizava a relação era - como escreveu o Fula- estar lá, na pressa, na urgência de estar, do corre corre para quê?, para nada, para ficar a gastar solas contra as pedras ou os fundilhos das calças nos muros. Ou seja, e não sei se isto é trágico ou extremamente belo, aquela vulgata mil vezes repetida de "no nosso tempo" é falsa, ou se não é falsa não consegue falar com justiça da nossa vida, de nós. Não há o "nosso tempo". Há apenas lealdade às nossas moléculas. A todas. Aquelas que nos fazem sentarmos-nos aqui, a escrever digitalmente, na ausência, e as outras, as que nos fazem correr os Olivais à procura de um café aberto no dia de Natal. O nosso tempo só morre quando, por falta de quorum molecular - ou por um qualquer distúrbio representativo que por vezes também ocorre na nossa estrutura atómica - desistimos das formas de vida que nos trouxeram até aqui. E não há dúvida, penso-o enquanto estamos na sala do Xai-Xai e olho estas oliveiras plantadas entre os sofás, chove cada vez mais lá fora, em grupo ficamos mais fortes. Diria mesmo, mais bonitos.
Hora de almoço, depois das aulas. O pessoal empanturra-se com o que houver e no fim enfia com dois papo-secos para arrematar a fome. De seguida pira-se, bate com a porta da rua e lança-se em passo acelerado para a pressa do resto do dia. Mas em chegados tudo vira mais calmo, seja lá onde isso for, que nalgum sítio da rua certamente, um dos sítios do costume onde esteja a malta. Depois pingamos pelas casas dos refractários: soam três toques de campainha ou tenta-se um assobio codificado. Nem se aguarda resposta que essa não espera, ou melhor, diz que lá estamos à espera, no sítio do costume. Entretanto passamos por casa e entramos pela porta da cozinha, sempre aberta e guardamos duas maçãs no bolso que daí a nada a fome esperta de novo e depois já só no lanche, e voltamos então a aquietar-nos já no mesmo sítio do costume. Aos poucos vão chegando, todos trincando os restos do almoço, com cumprimentos ligeiros que nem se nota antes terem havido despedidas. E é tudo tão seguido, tudo tão naturalmente após o último momento em que ali estiveram que nem surge ímpeto de iniciar conversa. Ela vai brotando serenamente, ao ritmo de quem vem chegando como se nunca tivesse partido e assim até à hora de jantar, sempre assim. Um destes dias é possível que alguém diga algo de verdadeiramente novo, mas é certo que poucos lhe darão atenção que as palavras aqui até nem são o mais importante. Que importante é estar por ali, por entre todos, até que algo se passe ou o fechar do dia – como interrupção a que ninguém liga – os leve de volta para casa. Não há nada que tenha de ser dito ou feito, que amanhã, sabe-se, mesmo que ninguém o diga ou escute, amanhã haverá mais. E era assim que se seguia, com desfrute, sem ânsias, como se todo o tempo do mundo se pudesse sentar connosco naquelas escadas, volteado por entre os dedos brincalhões, ligando distraidamente o que foi com o que há-de vir …

… até ao dia que de longe, por detrás de um nickname estranho, houvéssemos de escrever despudoradamente que tudo aquilo, aquele desprendimento, nos parecerá um enorme esbanjamento. Desses dias de lá de longe, de onde hoje escrevemos, em que o tempo já não escorre assim e o pessoal que anda por aí, sempre que o vemos, já se sente na embaraçosa obrigação de nos cumprimentar. Ou já nem isso, que já pouco disso o fazemos de mão estendida, ampla, generosa, quente e pegajosa de suores e manteigas escorridas das sandes. Que agora quase tudo, mesmo o acenar das "escadas onde nos sentávamos com duas maçãs no bolso", até já isso se vai fazendo por via de um frígido e apressado endereço electrónico. Falta carne.


por Fulacunda

domingo, 25 de janeiro de 2009

comércio nos olivais

comércio tradicional

Vendedores ambulantes asseguravam aos habitantes pioneiros,o abastecimento de bens alimentares.
João H. Goulart (Arq. Fotográfico Municipal de Lisboa)
in À Escala Humana,
João Pedro Silva Nunes
E não só, acrescento eu. Repare-se na Fascinante roulotte no canto inferior direito da foto…

comércio modernoSupermercado Pão de Açucar nos Olivais, Lisboa, 1977.
Vasques, in Arquivo Fotográfico da C.M.L..
Sugerida por Marco Oliveira (João Belo III)


comércio... p'rá ressaca Farmácia na Rua Cidade de Quelimane
João H. Goulart (Arq. Fotográfico Municipal de Lisboa)
in À Escala Humana João Pedro Silva Nunes

por: Xai-Xai

sábado, 17 de janeiro de 2009

há bocados dos olivais ...





















... que chegam ao Algarve

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

fazer eco

... deste APELO

(aos participantes neste blog peço desculpa pelo abuso)

por

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

mar e rocha que podiam ser dos nossos‏

As horas voavam e, como sempre, Marilu seguia em passo apressado para não perder o 21, essa era sua sina, chegar sempre às últimas e perder a chance de agarrar lugar sentada, amanhã haveria de ser diferente, jurava com a mesma força e certeza de tal não acontecer. Chegado o autocarro à paragem, lá se arrastou com a carneirada em passo de pinguim, entrou por onde e como pôde, mais não desejou que qualquer coisa a que se agarrar com uma das mãos, que a outra serviria para lhe facultar a leitura para viagens como aquela, assim, quase sempre assim, fazia Marilu o percurso Av.de Berlim-Rossio que a havia de levar ao escritório. Naquela manhã, embrenhada que estava em leitura de conto de amor, levou tempo a aperceber-se que o inicialmente leve toque em partes suas, por trás bem se vê, se repetia numa cadência que não deixava margem para dúvidas, num crescendo de quantidade, qualidade e pressão, a coisa era propositada, invulgar e bem feita. Refeita do choque da descoberta que lhe distraía a leitura e, pior que isso, a trazia numa polvorosa húmida, que mais que preocupá-la a fazia engasgar em seco, deixou a coisa arrastar-se até ao ponto em que mais não, tal foi após ter gozado uma doce e violenta descarga eléctrica que lhe percorreu as entranhas e ecoou num gigante gemido interior de que não tinha memória em si. Sem aviso, que a coisa não era pública nem de requerer tais atenções, espetou uma cotovelada fortíssima no parceiro de trás, juntando à falta de aviso no gesto, a cirúrgica aplicação na força e local, como aprendera num prospecto de ginásio de Krav Maga, e que tomara por certo e seguro ser de uma inutilidade a toda a prova. Puro engano.
Alberto, Rocha de apelido, seguia sossegado em sua viagem, assistido pelo fiel parceiro de sempre, um lindíssimo Golden Retriever, com artes e conhecimentos de geografias citadinas, com lealdades e solidariedades tais que dele faziam um cão guia de truz! Foi pois como um raio que recebeu aquela descarga de cotovelo, que por pouco não o prostou de borco, dando-lhe que fazer nos dez minutos seguintes, qual fosse a tarefa de tentar reencontrar espaço para conseguir respirar, não ver era uma coisa, não meter ar ao bucho outra totalmente diferente e que não ia lá com cães-guia. O cão, esperto como só os cães das histórias sabem ser, apercebeu-se de imediato que o dono carecia de um amparo extra e, ainda que contrariado, viu chegar a hora de terminar suas focinhadas carinhosas pelo entremeio daqueles jeans com aroma a pecado e algum tesão. Chegou-se ao dono, que de imediato deu sinal de trela que a coisa era de estar sossegado e por ali, pois que alguém mal lhe queria, já que pelo menos a carteira não o era.
Chegada a viagem ao Rossio, vendo o personagem de bengala e cão ainda um pouco combalido, Marilu esqueceu pressas e correrias e cedeu uma mãozinha de solidariedade, ajudando-o a desenvencilhar-se por entre a turba formigueira e mais rápido chegar ao ar livre que lhe parecera o homem necessitar. Acabaram por dividir atenções um pouco mais, num café tomado no quiosque ao lado da paragem dos táxis, e onde nenhum dos dois resolveu trazer à colação as estranhas incidências na viagem acabada, limitando o assunto ao frio que fazia e a perguntas e palpites acerca da vinda da chuva ou não. O Golden, semi cabisbaixo, questionava-se se porventura sobraria para ele, tal era a capacidade detectivesca do Rocha seu dono, e palratória da moça cheirada, que ali sorvia o café por entre uma conversa sem nexo. Chegaram as despedidas, de alivio para uns e tristeza para outros e partiram, cada um a seu caminho, que a vida custa a ganhar.
No dia seguinte, Marilu, acometida que fôra por uma insónia que a não deixara dormir e a que não era alheia uma investida cadenciada em partes suas a que vinha dando pouco ou uso nenhum, saiu cedo cedinho de casa, chegando pela primeira vez à paragem a horas tais que à chegada do autocarro estava ali perto da frentinha da fila mesmo, o que veio a ter o nunca visto resultado de conseguir lugar sentada. Ainda mal refeita da conquista, subia o veículo os primeiros metros da longa subida até ao shopping, à esquerda o cemitério ficava para trás, olhou ao lado e não sem surpresa e o seu quê de emoção reencontrou o cego da véspera, já ele se apercebera que ela chegara, o cão também, que nisto de olfactos a coisa piava fino e o perfume dela não era coisa de passar despercebido, outros cheiros mais escondidos também não, dono e cão em sintonia.
- Desculpe, nem me apresentei ontem ... Maria de Lurdes, ou Marilu, mas os amigos chamam-me Mar, como se mar houvesse por estas terras de olivais ...
- Que prazer, Alberto, ou Beto, mas os amigos chamam-me Rocha ... e rochas olhe que sim, que as há, por entre oliveiras e muros aqui do sitio
- Engraçado ... fica-lhe bem . E o cão, o seu cão, como se chama?
- É o meu guia ... chama-se Mexilhão, era para ser Brisa, mas não quis confusão com o rio, o tejo, se me faço entender!
A viagem decorreu em animada cavaqueira, o Rossio chegou em três penadas quem diria, desta vez não houve incidentes, para tristeza de um e uma, gáudio de outro. O cão, esperto como só os cães das histórias sabem ser, sentiu algum remorso e leal desconforto ao perceber-se com novo papel no dito popular, substituída foda por culpa no momento de Mar bater no Rocha, e tudo por farejados cheiros nela ... em sonhos desejados, à evidência negados e afinal atreitos a finais de falta de ar colectivo!

Bafatá