segunda-feira, 27 de outubro de 2008

das guerras que ficam por contar ...

Quando chego a casa já o jantar se havia servido, há muito tempo. Nos dias comuns é a minha mãe quem primeiro chega do trabalho, mais tarde chegará o meu pai e quando finalmente cair a noite já todos nos sentámos à mesa, em família. Hoje, às 8 da noite, faltava eu.

Já ontem tinha chegado atrasado e fui por isso chamado à razão. Agora, olhando para os pratos já empilhados na cozinha, sei que não me espera nada de bom. Mas já estou preparado. Antes, durante as largas horas em que estive escondido na minha trincheira no quintal dos Moreiras pude reflectir demoradamente no assunto e em todas as suas possíveis consequências. É a minha mãe quem me fala agora, diz-me que não compreende como posso achar que eles não ficariam preocupados, que eu tão novo assim e ainda lá fora até tão noite adentro, ela mais de palavras já se vê. O meu pai, o seu olhar - e esse já me bastaria – leva-me à cozinha dependurado nas suas mãos grandes e em duas penadas chega-me a roupa ao pêlo sem mais nada dizer, que nada há para dizer. Lido melhor com ele e assim com isso. Vejo nisso um ponto final e apesar do ardor do correctivo dou-me por tranquilo ao presumir que nada se me aplicará em castigo.

Apresto-me para me retirar, em silêncio. Também eu nada tenho para dizer. Vim sabendo o que me seria devido, resignado já, e por isso abstenho-me de lhes explicar os motivos. Sei que nunca seria capaz de lhes fazer perceber o quão importantes tinham sido as razões do meu atraso. O seu mundo de adultos nunca compreenderia como poderia uma brincadeira de todos os dias afastar-me de um compromisso que eu estava farto de saber ser o único a cumprir em família. Mas sou ainda um miúdo, gosto de brincadeiras idiotas e ainda mal sei medir o impacto que as minhas reacções têm nos adultos. Ficaram furiosos de me ver assim, quedo e resignado, amofinado no meu silêncio sem sequer arriscar uma justificação. Quando dou pelo agravo, quando percebo que eles afinal entendem tudo isso como uma afronta, já é tarde demais.

Três dias de castigo. Três dias sem rua a seguir ao lanche. De repente tudo se esboroa em mim. Já não me sinto sequer no intervalo da guerra que vou ganhando lá fora e de onde vim herói e que há dois dias travo por entre os muros dos quintais vizinhos da Rua 5. A metralhadora que serrei e aplainei de um pedaço de porta velha, e que depois laboriosamente arredondei com a grosa que tantas vezes vi trabalhar nas mãos do meu pai, acaba por se dissolver em cima do baú de entrada nas lágrimas com que a minha vista se embacia. Subitamente compreendo que acabei de perder a guerra. Ninguém lá fora, se contado o sucedido, se comoverá com este meu destino. Por isso nem ponho por hipótese vir a justificar a minha desistência mais tarde. Nem isso provavelmente ficaria bem a um soldado.

G, a mais nova e mais dada das minhas três irmãs, vem sentar-se ao meu colo. Seco os olhos e é ela quem me faz levantar o olhar de novo. Estão ali quase todos os meus irmãos, mudos, até compadecidos comigo. Compreendo então que se eles existem então há quem saiba que eu não fugi da guerra que travava, que apenas fui impedido de a continuar. Outros, em situação equivalente, não terão a possibilidade de partilharem o seu orgulho com quem conhece todas as suas desventuras. Nesse verão, depois do castigo, quase todas as brincadeiras acabaram por ser trocadas pelas descidas endiabradas nos carrinhos de esferas.

Muito mais tarde, quando já em adulto me quiseram voltar a pôr a brincar às guerras, eu simplesmente recusei e por isso não me lembro de alguma vez ter voltado ao reboliço das armas e trincheiras. Mas dessa guerra guardo a percepção dos meus irmãos. De uma guerra que afinal só ganhei junto deles cinco. E de como é importante poder ter ao nosso lado essas pessoas especiais que sabemos estarão sempre dos dois lados da nossa realidade por mais anos que se estendam por diante de nós. Hoje olho para cada um deles e continuo a encontrar-lhes segredos que guardam de mim, das guerras que eu não pude acabar. Fico a pensar que cada um de nós, por mais distante que possa parecer, é sempre uma parte que pode contar ou calar do outro. E fico a pensar - e a pensá-los - na sorte que tivemos em sermos tantos … tantas partes de nós.

Abril de 2007

7 comentários:

Anónimo disse...

Cada qual, faz a guerra como pode.

Anónimo disse...

Simplesmente fantástico!

Aquele Abraço,
L.M.

cláudia santos silva disse...

que sorte serem tantos, sim, Fulacunda. e cúmplices, como só talvez os irmãos conseguem ser. apesar das guerras, Amigo :))

(vê lá se vens por cá mais vezes, saca da caneta, há por aqui alguma falta de animação)

Beira disse...

Boa, mais um belo texto.

Timor disse...

Acho que sei do que falas quanto a irmãos e irmãs.

JPN disse...

estou em tanto do que tu contas. estamos em tanto do que tu contas. e mais ainda: também, por mais que tenha corrido com espingardas de pau e pistolas de "fulminantes", me recusei a brincar às guerras. comoves-me, Fula!

xai xai disse...

Fula: Perdeste a guerra, mas foi apenas por falta de comparência, "na secretaria", sem desprimor, e para além disso, os teus fãs, a tua claque, sabia disso, mantiveste intacto o teu prestígio de combatente