quarta-feira, 26 de setembro de 2007
Umas e meias da tarde
Olho a foto que a Rapariga da Província colocou aqui e fico especado diante daquela mancha de realidade. A verdade é que vim ao blogue enquanto tenho que fazer um compasso de espera para a recepção de um documento de trabalho e assim, fico a marcar passo diante do êcran. O preto e branco da foto, que pode ter sido apenas o resultado da sua passagem por algum programa de edição de imagem, interpela-me. Tenho uma amiga que tem a mesma paixão que eu, embora ela lhe seja mais fiel: todos os dias o seu ofício é conservar e classificar as pequenas peliculas fotográficas do espólio de uma fundação que tem um património de imagens vastissímo. No caso desta imagem não a reconheço de todo e por isso não tenho aquela tentação de tentar perceber onde é que já vi aquela cara. É claro que os brincos e a blusa, poderiam ter os indícios de uma marca temporal, mas a verdade é que hoje absorvemos todos os estilos de época e o anacronismo das nossas actuais modas despistar-me-ía. Há algo no entanto que me perturba como se me quisesse contar uma pequena história (e deus sabe o que eu faço por uma história, seja ela qual for): o relógio de parede. Tudo o resto no enquadramento parece que tem a disposição de querer apagar as pistas. O olhar de lado, entre a pose, a surpresa, os braços cruzados, o sorriso hesitante, o próprio ângulo da casa. Excepto o relógio. O relógio é afirmativo, eloquente. Uma e meia. Seria uma e meia da tarde? Ou uma e meia da madrugada? De imediato deixo a foto e começo a pensar nas umas e meias nos Olivais. Quando penso nas umas e meias nos Olivais divido-me logo entre as umas e meias da tarde e as umas e meias da noite e cada uma delas me leva para uma viagem no tempo diferente. As umas e meias da noite nas ruas dos Olivais eram o território do vazio, da desolação, excepto à entrada de alguns prédios onde se juntavam os jovens e adolescentes, perto dos cafés fechados, e é a memória, como falava o PVG, da falta de ofertas culturais e de diversão de um bairro que a partir das dez horas (e isto no Verão) adormecia no seu embalo entediado. Não, prefiro as umas e meias da tarde, embora o exercício do recordeio vá mais atrás, quando vinhamos da escola e tinhamos a tarde livre para as nossas aventuras. Almoçava, ainda em família, ás vezes ainda com o meu pai, e depois santa vadiagem. Ir buscar a bicicleta à arrecadação, juntar amigos, fazer equipas, deixarmo-nos estar, ali, parados. Surtidas ao vale de silêncio. As fugas. O regresso à escola já não para as aulas, para flirtar, cravar um cigarro, esperarmos amigos, conhecidos ou simplesmente companheiros ocasionais do muro do pátio. As umas e meia da tarde, quando o sol varia mais forte, amolecendo o espírito. Paro. O que é que isto tem de tão especial? Em todas as ruas de todos os bairros de todas as cidades de todos os países de todos os mundos devem haver memórias de adolescências trincadas pelo sol, pelo vazio, pelo saboreio do não fazer nada. O que é que as minhas umas e meias da tarde têm assim de especial para além de serem minhas e de eu não as poder dispensar para contar uma pequena história, a minha ? A pergunta leva dentro o engano que a trai: parece que eu só as deveria contar se elas tivessem algo de especial. E não. Não existe nenhum dever na narração. Eu quero contá-las porque elas, mesmo sendo umas banais e vulgares umas e meias da tarde, me reconstituem enquanto história. Enquanto possibilidade de uma história. E quero contá-las assim, como se fosse um jogo de esconde-esconde. Com o mesmo decifrar e o mesmo apagar das pistas que tem a fotografia da rapariga da província que me entreteve neste compasso de espera em que aguardei a chegada de um documento.
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