Não sei como cresceu aquele ódio genuíno contra as porteiras, principalmente a do 88, que nunca nos deixava jogar à bola no pátio interior que unia o 88 e o 89. Se hoje me contassem eu não acreditaria que grande parte da nossa energia era empregue a fugir da vassoura daquela figura pequenina mas determinada que nem nos dias de chuva nos deixava jogar nas arcadas dos prédios. Certo e sabido, a embirração leva à embirração e nós começámos a fazer algumas represálias à personagem cujo nome, tenho de reconhecer com pena, esqueci: raides de bicicleta ou corridas ao pé das galinhas da porteira, vozeares de cacarejar sempre que passámos pela sua janela, brincadeiras parvas com a sua filha, a imaginação não se detinha. É claro que havia sempre uma porteira boa e uma porteira má. A do 89 era boazinha. Também já não me lembro do nome dela, o que me faz pensar que não é nem pela bondade nem pela maldade que as pessoas se ficam na nossa memória. Por exemplo, lembro-me da nossa porteira, a boa da D. Josefina, com os seus dois filhos, a São e o Carlinhos, dois miúdos que muito sofreram porque naquele tempo não estávamos ainda preparados para aceitar que os filhos das porteiras podiam ser ou nossos amigos ou gente como nós. Houve no entanto uma altura em que esta embirração cresceu e em que, de repente, deixámos de ter porteiras boas. A porteira do 88 tinha conseguido fazer com que tudo à sua volta respirasse aquela maldade que lhe consumia as entranhas. Estávamos nos idos de 75 e não nos ficámos. Aderimos à luta armada e criámos o MIAP, o movimento independente anti-porteiras que até há pouco tempo estava assinalado, a risco de canivete, na entrada do número 6, antigo 87. As acções mais comuns eram a sabotagem do carro do marido da porteira do 88 e do 87, com batatas. Mas chegou a realizar ataques ad hominem ao porteiro do 87, lançados, numa acção concertada entre o 6 Esq do 88 e o nosso, o 5 Dt, com tomates maduros, e até, prenúncio da guerra química, sacos de urina e água. Foi o mais longe que fomos e ainda me lembro da forma como depois saímos da varanda e entrámos em casa com um ar tão beatífico que a minha mãe, já nessa altura muito religiosa, nos confundiu com aqueles anjinhos que tinha espalhados pelas paredes da casa. Este movimento, independentemente da convicção com que surgira, não aguentou mais de dois dias, o que para a época, politicamente, até não era mau palmarés. E não acabou porque nos faltassem as causas, nem as ideias, nem os planos de ataque. Aconteceu que uma tarde a componente civil do MIAP, desejosa daquele protagonismo político que a luta armada nunca daria, fez uma manifestação, diante do 87, gritando a plenos pulmões contra as porteiras e contra o autoritarismo. Nem pais nem porteiras nem patrões, gritámos a uma só voz durante uma boa meia hora, até que, alertado pela algazarra, o pai do Luis Costa, que era militante do PC, desceu cá abaixo e perguntou se achávamos muito digno andarmos a prejudicar uma mulher simples, da classe trabalhadora. Deu-nos uma palestra moralista sobre a revolução, Marx e Lenine e conseguiu que olhássemos para o mais profundo da nossa alma de pequeno burgueses e em uníssono alterássemos a designação e o comportamento politico do MIAP que passou logo ali a ser o Movimento Independente de Apoio às Porteiras. A partir daí a revolução afastou-se do tranquilo curso das nossas vidas. Ainda houve algumas sequelas, durante algum tempo acções como tocar à campainha das porteiras ainda foram feitas de forma avulsa e não concertada e que não afectaram a entrada do MIAP, na sua fase de exaltação operária. Teve logo a seguir um fim triste, entregue sem dúvida a meritórias acções cívicas mas também, chatas, sensaboronas, e passado uma semana, sem nenhuma aventura revolucionária foi extinto, por tédio.