Aquela era a nossa casa, o lugar onde nos sentíamos bem, onde entrávamos sem justificação, onde nos deixávamos estar nas eternidades que couberam nos nossos vinte anos. Ficava na praceta aleixo corte real, no rés do chão, e marcou o período da minha segunda relação afectiva com o bairro, já depois de ter ido fazer um curso de teatro que mudou radicalmente a minha relação com a vida, com os outros. Aquela casa não era um lugar deste mundo. Ficava na fronteira entre um lugar imaginado e um lugar real. Podiamos escrever nas suas paredes. Podiamos chorar, rir, fazer teatro, tocar. O primeiro concerto dos Grajaú, com o Abílio Viegas, o Fernando Guê, o Ruca e o Pedro Queiróz (o dono da casa) foi lá. Era lá que nos juntávamos os do bairro, os que vinham do teatro, os que vinham da música, os das ganzas. E por vezes ficávamos a dormir quando nos chateávamos com a realidade. Ou ela connosco. Ou simplesmente, quando esse desejo de ser grupo nos atravessava. Viéssemos de onde viéssemos era por lá que passávamos. Tocávamos à campainha, alguém, nunca o mesmo, abria a porta. E se era hora do jantar íamos buscar mais um prato. E depois lavávamos a louça. Era a nossa casa. Podíamos escrever nas paredes, sempre que digo isto preciso de repetir, as paredes estavam cheias dos nossos poemas, das nossas inscrições de juventude a doer. A realidade não era especialmente meiga connosco. Estávamos nos princípios de 1980, a crise,
a crise, pá, esta porrâ da crise sobre as nossas vidas, pá,
era uma chatice, pá, salários em atraso, desemprego, contratos a prazo, a falta de perspectivas, e ao mesmo tempo este apelo meio subterrâneo ao
carpem diem, ao estarmos juntos,
as ganzas, as ganzas foram uma merda, um gajo ía comprar um pintor mas depois um pintor já não dava para nada, tinha de ser uma quinhentola,
e depois, lembras-te?, a gente ía para fora, para o Guincho, para o Algarve, para Sintra,
nos planos da viagem lá estava o chocolate,
sem ele até parecia que a festa não se fazia, não acontecia, ó pá o que lixou isto não foi o chocolate,
o chocolate era como o da ribeira, uma festa em grupo, a sério, o
pior foi a coca, a heroa, a heroa é que veio dar cabo disto tudo, eu já não te podia olhar nos olhos, entendes?
Foram os anos oitenta. É dificil explicar o que foi viver os nossos vinte anos abertos nos anos oitenta. Foi um festim, foi uma festarola, as coisas compuseram-se, endireitaram-se, o mundo tem um corrector ortográfico preso à cintura, mas foi duro, enquanto não se endireitou foi duro para todos nós. Não havia heróis. Foi por isso que construímos por dentro daquelas paredes uma edificação que afinal éramos nós a ressoar com o nosso medo de nos apequenarmos. A casa das paredes de nós era o lugar onde tudo parecia poder reexistir à nossa medida. Onde começámos a falar da arte, a falar da ideia de transformarmos o mundo, a descobrir a nossa sensibilidade, a atenção ao que nos cercava, faziamo-lo com gerações muito diferentes, todos eles eram iguais no escrevinhar nas paredes, hoje é dificil explicar isto. As nossas casas, elas próprias, não nos entenderiam.