terça-feira, 23 de outubro de 2007

A casa das paredes de nós

Aquela era a nossa casa, o lugar onde nos sentíamos bem, onde entrávamos sem justificação, onde nos deixávamos estar nas eternidades que couberam nos nossos vinte anos. Ficava na praceta aleixo corte real, no rés do chão, e marcou o período da minha segunda relação afectiva com o bairro, já depois de ter ido fazer um curso de teatro que mudou radicalmente a minha relação com a vida, com os outros. Aquela casa não era um lugar deste mundo. Ficava na fronteira entre um lugar imaginado e um lugar real. Podiamos escrever nas suas paredes. Podiamos chorar, rir, fazer teatro, tocar. O primeiro concerto dos Grajaú, com o Abílio Viegas, o Fernando Guê, o Ruca e o Pedro Queiróz (o dono da casa) foi lá. Era lá que nos juntávamos os do bairro, os que vinham do teatro, os que vinham da música, os das ganzas. E por vezes ficávamos a dormir quando nos chateávamos com a realidade. Ou ela connosco. Ou simplesmente, quando esse desejo de ser grupo nos atravessava. Viéssemos de onde viéssemos era por lá que passávamos. Tocávamos à campainha, alguém, nunca o mesmo, abria a porta. E se era hora do jantar íamos buscar mais um prato. E depois lavávamos a louça. Era a nossa casa. Podíamos escrever nas paredes, sempre que digo isto preciso de repetir, as paredes estavam cheias dos nossos poemas, das nossas inscrições de juventude a doer. A realidade não era especialmente meiga connosco. Estávamos nos princípios de 1980, a crise, a crise, pá, esta porrâ da crise sobre as nossas vidas, pá, era uma chatice, pá, salários em atraso, desemprego, contratos a prazo, a falta de perspectivas, e ao mesmo tempo este apelo meio subterrâneo ao carpem diem, ao estarmos juntos, as ganzas, as ganzas foram uma merda, um gajo ía comprar um pintor mas depois um pintor já não dava para nada, tinha de ser uma quinhentola, e depois, lembras-te?, a gente ía para fora, para o Guincho, para o Algarve, para Sintra, nos planos da viagem lá estava o chocolate, sem ele até parecia que a festa não se fazia, não acontecia, ó pá o que lixou isto não foi o chocolate, o chocolate era como o da ribeira, uma festa em grupo, a sério, o pior foi a coca, a heroa, a heroa é que veio dar cabo disto tudo, eu já não te podia olhar nos olhos, entendes?
Foram os anos oitenta. É dificil explicar o que foi viver os nossos vinte anos abertos nos anos oitenta. Foi um festim, foi uma festarola, as coisas compuseram-se, endireitaram-se, o mundo tem um corrector ortográfico preso à cintura, mas foi duro, enquanto não se endireitou foi duro para todos nós. Não havia heróis. Foi por isso que construímos por dentro daquelas paredes uma edificação que afinal éramos nós a ressoar com o nosso medo de nos apequenarmos. A casa das paredes de nós era o lugar onde tudo parecia poder reexistir à nossa medida. Onde começámos a falar da arte, a falar da ideia de transformarmos o mundo, a descobrir a nossa sensibilidade, a atenção ao que nos cercava, faziamo-lo com gerações muito diferentes, todos eles eram iguais no escrevinhar nas paredes, hoje é dificil explicar isto. As nossas casas, elas próprias, não nos entenderiam.

Stradivarius


dando imagem a ...



... um fantástico post do Xai e a um comment da Lobita.
' ...
Aí chegados, a entrada foi fácil, à Olivais, cada um de nós escolheu o seu “pai” ou “avô” adoptivo e com um; “Senhor, posso entrar consigo?”, tornávamo-nos “familiares” de circunstância e passávamos os porteiros ... '.
Pois assim era em 1976 como bem referes Xai . A partir do ano seguinte, já com arzinho de rufia olivalista ... toca mas é a pagar bilhete meninos. E ali está, o 1º que paguei nas competições europeias, 1977, 70$00 que o mar não estava para peixe !! Recordo esse dia que falas e acredito que os restantes arrancadores prá bola à ultima da hora tenham sido o Joca, o Becas, o Bizou o Ossitos e o Xóina ( cabindense afastado por onde andas ?? ) . Pelo menos essa era a pandilha !! E nós os Bafatistas é que te agradecemos Xai. Por este post, por teres estado tanto tempo por ali connosco ...
Lobita: não era necessária gráfica confirmação mas aqui está, dois milinhos de escudos e foi para quem quis..
' ... Odiei aquilo. o estádio tremia debaixo dos meus pés - que aflição. ' ... Lobita comment !!
AQUILO Lobita, aquilo era e é a mistica de se ser BENFIQUISTA. Tremia o estádio, tremiam seis milhões de corações, tremia o mundo e o Deus Sol ! AQUILO , como bem escreves não se explica , sente-se , tem-se ou .... não ! No jogo da 2ª mão ... 4-4 em Leverkusen num jogo que quando recordo me enche de arrepio ... Dasssssss !!!

B’ora ao Benfica???

Quem me conhece, sabe bem da minha afeição pelo glorioso Benfica.

Quem não conhece, não vale a pena pesquisar através desta característica… somos 6 milhões.

Nasci numa família pouco atenta a futebóis. Excepção feita ao meu avô paterno que era leão de lugar cativo, não havia o hábito de ver ou conversar sobre futebol, o meu pai, que nunca vi num estádio de futebol, tinha um fraco pela equipa com aquela espécie de gato na camisola, digo fraco porque um clube daqueles não alimenta sentimentos fortes, mas nunca passou do sofá.

Tendo vivido em Angola de 1965 a 72, não cresci por isso com a televisão por companhia, ouvia sim, bastante telefonia, o que aliás, ainda hoje acontece.
E o que nos traziam essas ondas mágicas, para além das notícias oficiais da guerra, dos Beatles, Nelson Ned e Roberto Carlos (de que ainda hoje sou fã!)?

Traziam, as inesquecíveis e gloriosas noites europeias do Benfica.

Assim me fiz benfiquista e passei a conhecer os outros membros da família, Ajax, Manchester, Milão, Inter, etc.
Ainda hoje me custa desperdiçar tempo a falar de futebol com adeptos do Guimarães, Rio Ave, Sporting, União de Leiria, etc. Desde cedo aprendi a reconhecer os outros grandes da Europa, como sendo os nossos verdadeiros adversários.
Com dez anos, chego à metrópole (adoro esta palavra!) e não encontrei quem partilhasse comigo este gosto. O meu grande companheiro desses primeiros anos, o João Belo, que bem conhecem aqui na Olivesaria, nunca se mostrou muito adepto de “clubíces”, creio até que em dado momento assumiu essa sua limitação e tornou-se adepto do tal clube do gato a armar ao pingarelho.

Para ver futebol, tinha de acompanhar o meu avô (um prazer!) e ir ao Estádio José Alvalade. Fui, inclusive sócio do clube. Recordo aqui a mágoa que senti quando foi desmantelado esse local onde vivi tantas glórias benfiquistas.
Conhecia bem Alvalade mas, aquele que era o meu estádio, népia…
Por esta altura, com 14 anos, “parava” no reino de Bafatá, partilhando com aquela “seita”, os muros, a rua, participava nas incursões por outros territórios olivalenses e competia nos seus “autódromos” de caricas.
Certa noite de muro, mais exactamente no dia de 29 de Setembro de 1976 (bela memória a…………..do Google!), alguém lançou:

B’ora ao Benfica???

Sem surpresa, a resposta afirmativa foi unânime. Casaco vestido, tostões no bolso para o 50, e “ala que se faz tarde”. Na Catedral, os mais batidos apontaram a rampa norte como objectivo. Chovia. Aí chegados, a entrada foi fácil, à Olivais, cada um de nós escolheu o seu “pai” ou “avô” adoptivo e com um; “Senhor, posso entrar consigo?”, tornávamo-nos “familiares” de circunstância e passávamos os porteiros.
Consumou-se desta forma, um desejo antigo, sentar-me no 3º anel e ver o Benfica jogar “na Luz”.
Confesso que, para além do inevitável Bafatá e do quase certo TóJó, não me recordo dos nomes dos outros Bafatás que apadrinharam esta “premiére”. Na eventualidade de existir por aí alguém que se recorde deste episódio e me avive a memória, aqui o Xai2 agradece.
Para quem possa interessar, aqui vai o “relatório” do jogo:


29 de Outubro de 1976
21:30
Estádio da Luz
BENFICA 0 – DÍNAMO DRESDEN 0
2ª mão da 1ª eliminatória da Taça dos Campeões Europeus
Resultado da eliminatória: 0-2
Benfica eliminado (devemos ter sido roubados!)

Obrigado Bafatás….