Estávamos em 1980, nos Olivais, tinhamos dezasssete, dezoito anos. Não sei bem por onde começou a ideia de fazermos um jornal. Éramos do curso de Humanísticos, nos Viveiros, e tinhamos tido aulas com o Afonso Praça. Já nem me lembro do nome do jornal. Nem de toda a redacção. Era o nosso grupo de sempre, tinha de ser, inventávamo-nos em projectos para estarmos juntos mais um pouco. Lembro-me bem de duas peças do nosso jornal: uma reportagem sobre a antiga clínica do SAMS, quando ainda era só um prédio em construção, e o tempo que aquilo se arrastou e as pequenas tragédias que por lá ocorreram, e a outra era uma entrevista ao Sam (Samuel Azavey Torres de Carvalho, como encontrei
aqui, na memória de um dos seus últimos médicos). Tinha sido eu a propor a entrevista porque na semana anterior o vira na televisão a ser entrevistado, já não sei por quem, e, ao contar uma pequena história alheia com a qual se cruzara, emocionar-se tanto que chorara. Aquilo impressionou-me, tocou-me, comoveu-me. Eu naquela altura tinha a cabeça cheia de fantasias, de devaneios, queria ser artista, escritor, actor, cá dentro esvoaçavam-me imagens de Paris dos anos vinte, o Quartier Latin, os retratos que Somerset Maughan pintara de Gaughin em
Um Gosto e Seis Vinténs eram um lugar, um país, a minha pátria, não dormi na véspera , passei toda a noite em claro a matraquear as perguntas no teclado
hcesar da Princess, a máquina de escrever do meu pai, eu tinha ficado responsável de de organizar a entrevista.
E no final escrevi um pequeno texto, falava de Gaughin, exorcizava esse artista vagabundo, que anda com a casa às costas, não sei, uma pepineira pretensiosa e lamechas sem garra nem talento mas com muito nervo, era aquilo que eu era essencialmente, um nervo agitado a escorrer-me dos dedos, dos olhos, sei lá de onde nos vem o desejo, o ânimo. Separei essa folha do guião da entrevista e dobrei-a, guardando-a no bolso. As outras distribui-as pelos meus
amigos jornalistas.
Ainda me lembro do primeiro embate. A entrevista estava combinada para a parte da manhã. Ele estava no café do Tó. Nós ladeámos a cercania de ferro que protegia a zona dos ateliers, onde havia também uma cooperativa de consumo, e ele saltou por entre a cerca, havia uma falha de dois ou três varões. Abriu-nos a porta do atelier e entrámos no seu mundo mágico. Um expositor com bosta de boi, um relógio que andava ao contrário, uma mesa de criança, gigantesca, com cadeiras muito altas, que invertia o efeito com que vemos as nossas crianças, uma cadeira desnivelada que era uma alegoria ao Poder. E principalmente um lugar sensível, um lugar de desconstrução.
Recordo-me que ele estava à volta com um livro para o qual ainda não tinha título, só textos dispersos. Era o seu primeiro livro de textos, uma experiência inédita para ele. Leu-nos aliás alguns, ocorre-me um sobre um sapato. Eram textos irónicos, falando de coisas como se fossem gente. Era o mundo de uma criança. Naquele dia o Sam estava muito agitado. Tinha começado a fazer acupunctura para se libertar do vício do tabaco e aquilo tudo estava a custar-lhe muito. Mas recebeu-nos horas, na parte traseiro do atelier, com umas vidraças que davam para algo que se pareceria um jardim, já não me recordo bem. No final da entrevista eu ainda não tinha conseguido tirar o texto que tinha escrito para lhe dar. Tinha medo que os meus amigos me achassem rídiculo, pretensioso. Quando ía a sair verifiquei que ele tinha um daqueles quadros de cortiça para anotar e pregar coisas. Coloquei lá o texto, preso com um pionez. Chamava-se
Homenagem ao Caracol. Nunca mais lhe falei nisso e conversámos bastantes vezes, eu começara a escrever para o DN Jovem e muitas vezes, à terça-feira, partilhava o seu jornal. Por vezes na mesa sentava-se o Listopad, que também lá escrevia e ele separava o DN Jovem, e perguntava-me se eu já tinha lido. O Listopad levantava os olhos do seu jornal e ele dizia-lhe,
ele escreve aí. E claro, eu sentia-me inchado, artista, as terças feiras em que saíam textos meus eram os primeiros dias do resto da minha vida. Ou, noutra altura, levou-me até à sua escultura, que ficava ao lado do salão da Igreja velha e falou-me dela. Do modo como pretendia que ela fosse mais um ponto de onde se via o bairro do que algo para se ver. Que tinha cuidado de cada uma das perspectivas. É claro que nessa altura o mamaracho do Centro Comercial ainda não engolia tudo.
Uns anos mais tarde, já ele tinha morrido, ao passar ao pé daqueles alfarrabistas que há ao pé do Martinho da Arcada, encontro numa banca de livros um título do Sam. Chamava-se
Homenagem ao Caracol e outros textos. Estremeci por dentro, por fora. Encontrei lá os outros textos, história de um sapato e os outros que ele agrupava, ainda sem título.