"Dos vinte anos que vivi nos Olivais-Sul, dois foram decisivos para o conhecer como bairro, como ecossistema comunicacional único. Foram os anos de 88 a 90 em que a minha actividade como animador teatral e sócio cultural veio dar um novo efeito de sentido ao conhecimento do bairro adquirido durante os dezoito anos anteriores. Foi por essa altura que me confrontei mais sériamente com o projecto do Centro Cívico e Social dos Olivais (hoje já construído e conhecido por Shopping dos Olivais), tentando perceber o efeito benéfico ou prejudicial das alterações a serem produzidas.
Principalmente porque, fosse qual fosse a avaliação, uma coisa era certa: as alterações seriam tão radicais como irreversíveis. Radicalidade e irreversibilidade que provém de uma fonte comum : gigantismo da intervenção e localização da mesma .
Sobre a localização, e porque o gigantismo salta aos olhos, o novo Centro Cívico e Social irá ser instalado num espaço antes ocupado por um Centro Comercial e Supermercado, por uma escola primária em situação provisória (há mais de vinte anos) e por um espaço devoluto ocupado por pequenas hortas e por um depósito de material.
É importante referir que o actual Centro Comercial (neste momento já não existe) foi um desenvolvimento de uma Grande Superfície que veio, gradualmente desde há vinte anos, a afectar a própria vida do bairro. Esta afectação manifestou-se no aumento da oferta de trabalho (a baixo preço e precário), na resposta de algumas economias familiares menos consistentes a este apelo ao consumismo que lhes era feito do outro lado da rua ( apelo que é também uma proposta de ocupação de tempos livres), na inevitável concorrência com o supermercado de bairro ( ele próprio forte concorrente da mercearia de bairro), no aumento de tráfego automóvel na zona e, finalmente, na centralização da vida quotidiana dos Olivais Sul.
Ocupo-me com tanto pormenor deste antigo espaço porque o novo Centro Cívico parece-me uma continuação pervertida e ampliada do discurso subjacente à construção da grande superfície de há vinte anos ( à qual foi adicionada um Centro Comercial) . E demonstra que a política de intervenção seguida hoje, em vez de analisar as alterações produzidas com a instalação do anterior Centro Comercial e de instruir orientações correctoras dos seus efeitos nefastos ( em vez de as pensar , apressadamente, como custos do progresso) , reafirmou e sublinhou o modelo anterior.
Com algumas diferenças substanciais. O Centro Comercial foi criado para satisfazer as necessidades da população do bairro e embora tenha produzido alterações de vulto neste ecossistema territorial e comunicacional - enfraquecendo-o- não o destruiu. Como sublinhou Paulo Varela Gomes (no Expresso de 22.5.93) a estrutura urbanística dos Olivais tinha, pela sua excelência, qualidades que se mostraram decisivas no enfrentamento desta e doutras agressões. Onde outros aglomerados populacionais sucumbiram, os Olivais mostraram possuir notável capacidade de recuperação .
Não totalmente, saliente-se. O bairro evidencia sequelas de alguns tratos de polé a que foi sujeito ao longo dos tempos: realojamentos (de vítimas de catástofes naturais) não acompanhados; destruição de parte substancial dos Olivais Velhos; construção e abandono durante anos a fio do imóvel onde mais tarde veio a ser instalada a super-esquadra; modo como foi implantada a referida grande superfície ou ainda, pela construção da nova igreja, um verdadeiro bunker desporporcionado e mal engendrado; abandono do pulmão do bairro, o Vale do Silêncio.
O novo Centro Cívico não é por isso um disparate pegado. É um rosário deles, tecidos, entretecidos, como uma malha de onde o bairro poderá não sair vivo. O mais grave disto tudo é que zurzir o pau de marmeleiro sobre tão megálomano atentado a este ecossistema territorial e comunicacional não equivale a construir um discurso nostálgico ou saudosista sobre os malefícios do futuro. Como se pode lêr no texto de P.V.G. - e como ambiciono que se conclua do meu - é apenas expôr algumas das mais elementares regras de bom-senso misturadas com outras tantas boas ideias sobre o espaço comunitário .
A primeira delas é a de que num determinado ecossistema comunitário as intervenções devem ter em conta os equilibrios anteriormente realizados . Depois, devem ser realizadas quando e como esse espaço carece delas. E por outro lado devem definitivamente perceber que uma construção urbanística é um organismo vivo e que todos os organismos vivos necessitam de se alimentar para sobreviverem. E que quanto maior é o organismo mais avassalador é o seu apetite.
E ainda, que uma comunidade deve de qualquer modo ser envolvida nas alterações a serem feitas. E este envolvimento deve ser participativo. A comunidade deve sentir que tem voz e é escutada. Que os interesses maiores em jogo são os seus. É o bê-á-bá do desenvolvimento comunitário.
Bastaria o confronto com algumas destas questões tão essenciais como básicas - que ainda poderiam ser multiplicadas - para se compreender que os Olivais não vão ser destruidos pelo BigCenter que aí vem mas pela inconsciência daqueles que decidem o lugar - e o nome- das coisas (2). Inconscientes e felizes com o beneplácito da população (3) e com a conivência das instituições e organizações da comunidade que não querem perder o comboio, ou melhor, um lugarzinho nesta barca de Noé (4).
E se os Olivais necessitam de uma intervenção, que necessitam isso ninguém duvide, uma intervenção quase cirúrgica de revitalização do seu espaço, ela deveria ser dirigida para o descentramento do bairro (. Ou melhor, para a sua pluricentração (passe a expressão) . Antes de lançar um só tijolo averiguar da capacidade dos já existentes - mesmo que modificados- contribuirem para o restabelecimento do equilibrio comunicacional ( o que, por paradoxal que pareça, está a ser feito em alguns espaços).
Uma intervenção desta natureza, que obrigaria a voltar a pensar os Olivais como um todo e simultaneamente como um espaço fragmentado, privilegiaria a pequena cirurgia e teria de observar como as várias grandes artérias que atravessam o bairro foram estruturando diferentes espaços com problemas e necessidades tão diversos que não faz sentido propôr a big solução. Pequena cirurgia valorizando a rede de organizações, e associações, estimulando a frequência do espaço rua e dos espaços verdes, cultivando o amor e o humor, a cultura e o prazer.
Os exemplos seriam muitos mas de tal forma estranhos ao maior número de leitores que perderiam toda a eficácia. O que importa é salientar uma ciência da intervenção na comunidade que a propôe como ecossistema onde o território é estruturante da comunicação. Os espaços falam e condicionam a fala.
Onde esse peso discursivo dos espaços e das instalações (das mais perenes às mais irreversíveis) tem de ser integrado. Se virmos as coisas deste ponto de vista conseguiremos visualizar o Centro Cívico como uma fala amplificada, ensurdecedora de toda a comunicação anterior. Assemelhando-se aqueles abafadores gigantes ( os olho de Boi) com que os matulões de bairro roubavam os bilas, os pirolitos e as estrelinhas aos putos do berlinde. O Centro Cívico é um gigantesco Olho de Boi Comunicacional. Um Plátano enfiado dentro de um vaso. Pronto a quebrá-lo e a estender as suas raízes tentaculares absorvendo toda a comunicação em redor. O Centro Cívico e Comercial resolve os problemas dos Olivais na exacta medida em que os destrói.
Estamos a falar do que os Olivais precisam (e do modo como Lisboa precisa dos Olivais). O problema é que os Olivais não existem. Ou pelo menos, neste caso, não foram tidos em conta. O Centro Cívico e Comercial não é para os Olivais. É para a cidade. É para resolver os seus problemas (como se os seus problemas não fossem aumentar com a destruição deste ecossistema) (4).
------------------------(1) Este texto foi escrito em 1993 e o seu titulo associava-se a um outro, "Tirem as mãos dos Olivais", de Paulo Varela Gomes, publicado no Expresso de 22.5.93. Republico-o agora (com anotações actualizadas e imagens retiradas do blogue Viver na Alta de Lisboa) porque o nosso Olival Virtual me parece ser uma boa oportunidade para discutir este tema. É claro que entretanto passaram-se catorze anos e muita coisa mudou, até mesmo no meu modo de pensar. Mas no essencial, mantenho-o como pontapé de entrada na discussão sobre a ideia de que nos Olivais - tal como é discutido aqui por Teresa Valsassina Heitor, - o atraso na construção do núcleo central (equipamentos culturais, serviços e outros) ter moldado negativamente o desenvolvimento do bairro .(2) No jornal da Junta de Freguesia o seu Presidente proclamava em letras garrafais, "Maior do que as Amoreiras", para falar do Centro Cívico, mostrando, através deste embasbacamento pacóvio e saloio pelo tamanho do novo Centro, que os Olivais não tinham autarcas cujo sentido de responsabilidade pudessem tranquilizar o bairro de que a intervenção em causa seria o mais integrada possível. (3) E por outro lado, na discussão sobre o Centro, muitas organizações, de natureza cultural, recreativa e religiosa, esperavam ter acesso a este espaço e essa expectativa condicionou o debate existente.
(4) É curioso também de referir que um dos argumentos à época para a justificação do centro seria o de um hotel de apoio à Portela. É claro que hoje sabemos qual a discussão sobre o actual aeroporto.