terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Chove e cá dentro as nossas moléculas

Falta carne, disse o Fulacunda ao terminar. E eu já não sei se ela nos falta, ou se nos sobra. Às vezes, nesta dimensão de homem-écran reparo que, sem o constrangimento da carne poderia viver mil anos assim, ligado ao espelho mágico, primeiro da tv, depois do portátil. Ou até da minha janela. Principalmente quando chove e a vida lá fora fica mais forte, mais acentuada. Não fosse a carne, as suas necessidades e exigências - que não apenas as maçãs que outrora colocávamos nos bolsos para aguentar até ao lanche - poderíamos viver mil anos assim. Alimentados por uma sonda, por um chip. Um dia, com o hábito e a persistência, da mesma forma que fomos evoluindo no circo das espécies, talvez passemos ao degrau seguinte, o homo sapiens máquina. Não sei, não sabemos. Sei apenas, como o Fula, que falta - ou sobra - carne na nossa vida. É por isso que eu gosto do frio, do frio que por aí anda. Ele atiça a carne que há em nós, agudiza-a, urgencia-a até. Não quero ser revivalista. Escrevo cuidadosamente porque não quero ser revivalista. Eu sou do presente e quando não o puder ser, porque às vezes esta carne não nos deixa ser do presente, serei do futuro. Nunca do passado. Não há nada no passado que me arraste. Ou que me guie. Tenho por isso pudor na palavra e no verbo revivalista. Até porque aquilo que posso dizer a seguir é, nesse domínio, ambíguo: tenho quarenta e seis anos e deles trinta e cinco foram-no na convicção exuberante da presença, e a presença é essa apoteose da carne. Só os dez últimos foram consumidos no festival inacreditável do eu-digital, os sites, os blogues, os chats. Mudaram muito em mim estes dez anos, claro. Mudaram tanto que por vezes tenho dificuldade em conectar-me comigo mesmo. Mas a minha pele, sinto-o, ainda é de um homem do aqui e agora.
Ontem estávamos em casa do Xai-Xai para ver as fotos da última excursão, a Sevilha. Antes do mais, o que vou a dizer não tem nada a ver com os pixels: acho até que o digital nos trata bem da vaidade. Nota-se que já não somos os que tocavam às campainhas das portas, somos assumidamente os dos nicknames, mas ou porque nos habituámos às falhas capilares, ou porque elas convivem melhor connosco, o digital trata-nos com delicadeza os avanços do tempo.
Estávamos portanto em casa do Xai-Xai. O Fula, o Benguela, eu, todos em duplo, poupam-se os nomes. E agora ao ler este texto do Fula é ainda mais claro o que senti quando lá estávamos: que entre o principio dos anos sessenta, quando nascemos, e o fim da primeira década do milénio, onde estamos, o paradigma da relação alterou-se completamente, deixando de estar sujeito aos constrangimentos da presença. Não é preciso avançar na tese deste argumento, todos nós conhecemos por dentro esta realidade. A minha mãe tornou-se há dias uma mãe skype e hoje já reza o terço com os seus irmãos pela internet. As relações ampliam-se na multiplicação de aquis e agoras que podem estar presentes num único acto comunicacional.
Falta, ou sobra, carne, dependendo do ponte vista. Aos nossos filhos, por exemplo, já sobra a carne que a nós, nos falta. Era aqui que eu temia a possível ambiguidade da palavra revivalista: sinto necessidade de ser leal à minha molécula, aos meus átomos que, como já escrevi, foram criados na apoteose da presença. As minhas moléculas - o meu corpo atómico- estão sempre em mutação, os tecidos degeneram-se, regeneram-se, mas não o fazem todos por igual. Ainda devo ter dentro de mim algumas moléculas que assistiram comigo à descida de Neil Amstrong nos territórios lunares. Não serão muitas, mas existem. Por isso, sem nenhum revivalismo, confesso esta necessidade de ser leal aos milhões de moléculas que comigo se construíram no face a face, no momento único, intransitivo, da relação. Naquela sala do Xai-Xai percebi que um grupo pode ser isso: a partilha dessa lealdade às nossas moléculas, àquelas que viram a luz do dia quando aquilo que valorizava a relação era - como escreveu o Fula- estar lá, na pressa, na urgência de estar, do corre corre para quê?, para nada, para ficar a gastar solas contra as pedras ou os fundilhos das calças nos muros. Ou seja, e não sei se isto é trágico ou extremamente belo, aquela vulgata mil vezes repetida de "no nosso tempo" é falsa, ou se não é falsa não consegue falar com justiça da nossa vida, de nós. Não há o "nosso tempo". Há apenas lealdade às nossas moléculas. A todas. Aquelas que nos fazem sentarmos-nos aqui, a escrever digitalmente, na ausência, e as outras, as que nos fazem correr os Olivais à procura de um café aberto no dia de Natal. O nosso tempo só morre quando, por falta de quorum molecular - ou por um qualquer distúrbio representativo que por vezes também ocorre na nossa estrutura atómica - desistimos das formas de vida que nos trouxeram até aqui. E não há dúvida, penso-o enquanto estamos na sala do Xai-Xai e olho estas oliveiras plantadas entre os sofás, chove cada vez mais lá fora, em grupo ficamos mais fortes. Diria mesmo, mais bonitos.
Hora de almoço, depois das aulas. O pessoal empanturra-se com o que houver e no fim enfia com dois papo-secos para arrematar a fome. De seguida pira-se, bate com a porta da rua e lança-se em passo acelerado para a pressa do resto do dia. Mas em chegados tudo vira mais calmo, seja lá onde isso for, que nalgum sítio da rua certamente, um dos sítios do costume onde esteja a malta. Depois pingamos pelas casas dos refractários: soam três toques de campainha ou tenta-se um assobio codificado. Nem se aguarda resposta que essa não espera, ou melhor, diz que lá estamos à espera, no sítio do costume. Entretanto passamos por casa e entramos pela porta da cozinha, sempre aberta e guardamos duas maçãs no bolso que daí a nada a fome esperta de novo e depois já só no lanche, e voltamos então a aquietar-nos já no mesmo sítio do costume. Aos poucos vão chegando, todos trincando os restos do almoço, com cumprimentos ligeiros que nem se nota antes terem havido despedidas. E é tudo tão seguido, tudo tão naturalmente após o último momento em que ali estiveram que nem surge ímpeto de iniciar conversa. Ela vai brotando serenamente, ao ritmo de quem vem chegando como se nunca tivesse partido e assim até à hora de jantar, sempre assim. Um destes dias é possível que alguém diga algo de verdadeiramente novo, mas é certo que poucos lhe darão atenção que as palavras aqui até nem são o mais importante. Que importante é estar por ali, por entre todos, até que algo se passe ou o fechar do dia – como interrupção a que ninguém liga – os leve de volta para casa. Não há nada que tenha de ser dito ou feito, que amanhã, sabe-se, mesmo que ninguém o diga ou escute, amanhã haverá mais. E era assim que se seguia, com desfrute, sem ânsias, como se todo o tempo do mundo se pudesse sentar connosco naquelas escadas, volteado por entre os dedos brincalhões, ligando distraidamente o que foi com o que há-de vir …

… até ao dia que de longe, por detrás de um nickname estranho, houvéssemos de escrever despudoradamente que tudo aquilo, aquele desprendimento, nos parecerá um enorme esbanjamento. Desses dias de lá de longe, de onde hoje escrevemos, em que o tempo já não escorre assim e o pessoal que anda por aí, sempre que o vemos, já se sente na embaraçosa obrigação de nos cumprimentar. Ou já nem isso, que já pouco disso o fazemos de mão estendida, ampla, generosa, quente e pegajosa de suores e manteigas escorridas das sandes. Que agora quase tudo, mesmo o acenar das "escadas onde nos sentávamos com duas maçãs no bolso", até já isso se vai fazendo por via de um frígido e apressado endereço electrónico. Falta carne.


por Fulacunda