por Jacinto Lucas Pires
“Morreu o coronel Aventino Teixeira.” “Morreu o Aventino.” Lê-se e não se percebe, claro. Frases absurdas, onde sujeito e predicado não batem certo. E, não, não é só por nos parecer sempre injusta a morte de um amigo. É que o Aventino era mesmo diferente. Vejo-o na sua magreza de décadas, com aquele bigode mítico, o copo de uísque, e as palavras saindo, velozes, ferozes (e no entanto estranhamente calmas), de uma boca escondida; ideias, personagens, anedotas, citações, tudo baralhado num caldeirão genial. O Aventino seria o “militar do 25 de Abril e do PREC” de que os jornais falaram no dia da sua morte, mas era também, para lá disso, o caso raro de uma pessoa que morava no presente do indicativo. Alguém que, desconfiando das posteridades, apostava tudo no aqui-e-agora, sempre sem cobrar favores ao tempo que passou, sempre com o humor de quem ama a vida a todo o momento. Por isso, pensá-lo assim em modo pretérito surge, mais do que como uma violência, como um erro, um terrível erro de concordância. “Morreu o Aventino.” Que frase mais sem nexo, caramba.Um homem que não era dos dias de hoje, é certo; exactamente o oposto do formatado-engravatado da nossa indiferença, ele que terá sido um dos fundadores do “politicamente incorrecto” português. E, também, é verdade, alguém a quem não era indiferente a memória, na qualidade dupla de personagem e de narrador. Pelo contrário, trata-se do exemplo refrescante de um pensador sem cátedra nem sistema que “fazia História” pela via pacífica de um “fazer histórias”.Conheci-o como amigo dos meus pais, enquanto visita lá de casa, a visita dos jantares mais tardios e sonoros. Para a criança que eu era, o Aventino era todo um espectáculo. Uma linguagem fascinante, que misturava gíria proibida e culta invenção, uns olhos de brilho malandro, e um tu-cá-tu-lá comigo que eu recebia como uma honra. Desde então me habituei a admirar as tiradas fantásticas daquele espírito inédito e inimitável. Descrevê-lo é, pois, um exercício de literatura dos mais utópicos. A frase conhecida afirma que era o “mais civil dos militares”, mas a verdade é que ele era também o “mais à paisana dos civis”. Uma espécie única de subversivo sentimental, conspirador transparentíssimo, revolucionário sem nostalgia, manso boémio, conversador de horas extraordinárias. Às vezes, para o provocar, eu pegava na personagem de uma canção do Vitorino e chamava-lhe Coronel Sensível. Mas, coisa rara, ele aí levava a sério e dizia que não, não, ele não era esse. E depois ria-se, “Coronel Sensível...”Fará muita falta a sua alegria crítica, a sua alfinetada permanente, a sua graça. Lembrando isso, tentemos sorrir, apesar de tudo. Se houver céu, o nosso coronel já arrastou o São Pedro para um Procópio improvisado numa qualquer nuvem mais escondida, tenho a certeza. E, se não houver nada, o Aventino já tratou de inventar alguma coisa, não haja dúvidas.
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