domingo, 9 de março de 2008

das festas, dos amigos, e do trabalho que ambos dão

Fui pretensamente ‘empurrado’ para fazer anúncio da festa. Um breve textito em jeito de apito final e talvez juntando umas palavras aqui e ali para aclarar a ideia de que se pretende apenas criar uma oportunidade para nos podermos encontrar, beber um copo, lançar conversas, rir e dançar. Nada disto precisa ser um apelo muito virtuoso, bem sei, que ou se vai ou não se irá. Mas acreditem, quando olhei para o texto que tinha acabado de escrever (ainda bem que a tempo me ocorreu nele pausar), fiquei impressionado com o tom e os significados pretensiosos que giravam em volta de um mero convite desta natureza, como se para essa circunstância me visse obrigado a declarar a amizade como um laço místico e exigente, uma série tortuosa de explicações que ninguém pediu. A amizade não é nada disso, não pode ser. Nas velhas amizades as palavras já pouco importam, dispensam-se até se ninguém para delas estiver com pachorra de fazer uso. As amizades têm de ser sítios onde nós possamos descansar, onde possamos falar do que quisermos, se quisermos, mas sobretudo têm de ser espaços honestos, vozeirados anos a fio, onde até os próprios silêncios sabem falar … as amizades são coisas simples e se fossem textos nunca seriam longos e justificados como aquele que em bom tempo acabei por apagar ou como este agora parece querer vir a tornar-se. Deixemo-nos de grandes prosápias, que aqui o que importa é que venham, que os amigos venham, e que os outros que também vierem amigos se tornem.



Data: 15 de Março, já se sabe, pela meia-noite ou assim

Local: Fábrica do Braço de Prata

Bar aberto ... e 10 euricos (porque 'vinho tirado é vinho bebido' e as uvas estão pela hora da morte)


Ah, e por favor não deixem de ir ali ao lado esquerdo assinalar se pretendem ir. É anónimo não traz qualquer compromisso e ajuda a logística. A comissão organizadora agradece.

Onde vivo bastas vezes bons e mais velhos amigos (desses que, afinal, se fazem em todas as idades, vou-o descobrindo agora já não disso céptico) narram-me algumas das suas antigas andanças, recordadas em noites assim tornadas como se blogs colectivos à volta das mesas, quando galinhas, caranguejos, camarões e piripiris já se deglutiram e nos alargamos nas aguardentes, às vezes vínicolas mas mais das cerealíferas. Contam-me essas histórias acontecidas enquanto eu e os meus andávamos nas coisas que aqui temos vindo a recordar, dos idos do maracangalha aos atrevimentos do Bairro Alto.

São histórias que sobrevivem, pertenceram a tempos de utopias, muita boa-vontade, quilos de ingenuidade, outros tantos de arrogância, abnegação extraordinária, malfeitorias muitas, desgraças imensas digo-as no fim, sem esquecer o que de bom também delas brotou. Algumas que adoro reouvir são as daqueles que calcorrearam matos longínquos apresentando cinema ambulante a gente que nem fotografia conhecia. Aldeia a aldeia, noite após noite, dessas de dormir na esteira, montando gerador e ecrã - esse a quem as pessoas iam espreitar por detrás procurando por lá aquela estranha gente que ali as visitava. Aldeias essas onde comecei a surgir vinte anos depois, elas talvez não tão diferentes assim.

Iam então crentes da necessidade de partilhar algo, de introduzir o "cinema", e de que isso em muito melhoraria mentes e prazeres alheios. No início desses tempos carregavam os "documentários de notícias" (lembram-se de que também os tínhamos na 1ª parte do cinema?, ainda que coisa muito "Estado Novo", depois deixados cair pela expansão da TV), muito revolucionárias então, mensagens de contrutores de nações. E ainda filmes que consideravam adequados, de diálogo fácil para a gente que presumiam ir encontrar e que tanto desconheciam. Filmes para gerar o apreço ao cinema que procuravam criar, partilhar. Jovens então, logo escolheram as fitas de Chaplin, certos que o riso ternurento, até poético, do Charlot cativaria pelo mato fora as atenções virgens de tudo aquilo. Com a vantagem de ser mudo - prescindindo da leitura de legendas em gente analfabeta ou de dobragens em gente que não entendia português.





O que me contam do que ali os espantou foi a total adesão, até timorata no susto com tanto movimento julgado real, espantada com a origem de tais seres afinal não ali, não por detrás dos "panos". Mas uma adesão inesperada, uma adesão sem riso, uma total adesão solidária, pesadamente silenciosa, de silêncios até entrecortados por lamentos com todas aquelas desventuras, dores e falhas do Chaplin de sorriso triste. Aquela população virgem de imagens gravadas, até da sua notícia, logo ali companheiros, comentando lamentando os sofrimentos do pobre Charlot, feito, ainda que num mundo dali tão diferente e desconhecido, imagem própria. E também felizes pelos fins acontecidos, pelo continuar bamboleante, afinal não vencido do homem - ali não personagem.


Gosto dessas histórias, porque me lembram esse campo dito "mato" que sempre me faz falta. Porque me sublinham a incompreensão que sempre me acontece quando lá. Mas mais do que tudo porque me recordam o meu pai António contando-me de quando viu pela primeira vez "A Quimera de Ouro", nos anos 30 ou talvez inícios de 40, em dias de Carnaval no Porto. Cinema cheio, gente jovem e feliz, carnavalando na ida ao cinema, nesse então sinónimo de dia de festa, barulhenta do dia e da idade - essa gente já do cinema sonoro, mas que ainda viram o Valentino e esses. E que, contou o pai António, correndo o filme, logo, logo, o cinema se calou, agora nada carnavalesco, absorto mas nada rindo do tal "filme cómico", também esmagada e solidária com as aventuras titubeantes do garimpeiro infortunado.

Reagindo ao trágico disfarçado de cómico? Talvez nem tanto, mais me parece que percebendo a angústia cantada em cómico - tal como tantos anos depois longe longe aconteceria com gente afinal não tão diferente. Pois não tanto o trágico que, abrupto, interrompe, mas essa angústia que continua porque faz sempre parte. Que, assim, faz continuar.

É preciso ser Chaplin para tal provocar? Não, nem mesmo pertencer à galeria dos imortais, Tati e esses. Aqui o João Belo já recordou o Sam (e que grande post, aquele que narrava a tortuosa oferta do título de livro) - e lembro-o recriado pelo Mário Viegas na TV. Gargalhávamos? Sim, às vezes. Mas era muito mais do que isso.

Explicar, isto do como comunicar para além dos códigos abissalmente diferentes? Do como o aparente afinal é esquecido e se partilha o verdadeiro? - não faço a mínima ideia.

Mas lembro as histórias e pergunto-me agora do que é o celebrar gutural (que o JB descobre abaixo, nos putos da fnac ritualizando na comunhão do riso alvar) em torno dos badarós?

E encolho os ombros, não o porquê do nosso (auto)badorizar, mas sim o para quê dele - porque um qualquer gajo conta anedotas, ou é anunciante, ou é giro, ou escreveu O Meu Pipi (alguém consegue reler O Meu Pipi?), ou é político que (às vezes) pensa como nós? Ou porquê badorizar os outros, dizendo-os ignorantes, povo, riso estúpido bom para ele, como se "povo" assim seja? Quando afinal, diz-nos a história (pelo menos esta história) nada disso é verdade, badorizamo-nos, badorizamos, por mera decisão. Preconceituosa, ignorante.

Porquê o nosso (auto)badorizar? Talvez uma tralha brotada da nossa actual obrigação de ser feliz ("Seja feliz", diz o locutor televisivo na despedida, às vezes "irónico" no "Faça o favor de ser feliz"), coisa da confusão, de nem percebendo como isso do ser "feliz" se vem procurando com alegretices. Roucas, rápidas. Incompetentes. De grosseiras.

Tudo isto só mesmo para amputar a tal angústia partilhada, partilhável, como se coisa má. Só mesmo para, assim, sermos menos qualquer coisa. (Mesmo que na Fábrica do Braço de Prata afinal da "cultura", afinal no que é o chic pensante lisboeta desse algum hoje. Palco nada refúgio do badaroísmo. Palco selvagem. Porque muito longe do mato? Não. A pergunte é mesmo "por que é que muito longe do mato"?)