Foi em 1965 que os meus pais tomaram a decisão: mudar da Avenida do Brasil para os Olivais Norte. Eu era muito pequeno, mas contaram-me do que então se falou. Que os Olivais eram longe, reclamava a minha avó, que quase não havia transportes para lá, e que o prédio – onde vivi até aos meus 27 anos – era uma corrente de ar de tão aberto. A favor, no entender dos meus pais, as casas serem enormes e nem por isso caras (havia o regime da habitação económica).
O facto é que a 20 de Junho de 1965 (sei a data de cor por ter sido na véspera de fazer três anos) eu, os meus dois irmãos mais velhos e os meus pais passámos a dormir num novo território, quase sem carros, com matagal a envolver ruelas. Mesmo à frente da minha casa, um poço fazia as delícias dos “ciganos” – nome a que baptizávamos todos os miúdos pobres que desafiavam a nossa segurança. Recordo-me bem desse poço ainda aberto, com duas tábuas de aspecto duvidoso (leia-se podres) em cima, e das lendas que o acompanhavam. Por entre as tábuas atirávamos pedras para tentar perceber a sua profundidade. Era fundo.
Já não sei dizer quando é que a CML decidiu “recuperar” o poço e as arcadas, vestígios de uma quinta secular dos Olivais. Éramos miúdos mas ficámos horrorizados com o resultado, de tal forma que – lembro-me – termos comentado que para terem feito aquilo mais valia terem deitado as “ruínas” abaixo.
Nao me parece que a nossa irritação tivesse a ver com uma consciência patrimonial, mas talvez com o facto de terem tirado magia ao nosso brinquedo.
Mas, adiante, com o tempo – e o fim das barracas que envolviam o bairro -, as ruínas cada vez foram mais um espaço nosso, dos putos que viviam nos prédios altos da Rua General Silva Freire. Era ali que escondíamos os maços de cigarros, nas heras que trepavam pelas arcadas, e em cima do tampo do poço – já devidamente cimentado – conversávamos sobre tudo e nada até altas horas.
Nessa altura já o capim dera lugar à relva, onde as árvores eram colocadas – a nosso ver – para estragar os nossos campos de futebol. Conclusão: à noite íamos com uma serra e cortávamo-las (a prova de que a ecologia era para nós uma ideia distante). Dias depois, novas eram plantadas e assim se fazia o jogo do rato e do gato.
Também as ruínas serviam as “forças de autoridade”, que ali se escondiam para tentarem fazer “refém” a nossa bola, uma vez que a nós dificilmente apanhavam. É que era proibido jogar à bola na relva, e por essa "perigosa transgressão" várias vezes nos levaram para a esquadra. Numa delas - não tínhamos mais do que 13, 14 anos -, fomos o caminho todo a insultar um polícia que tinha tirado a pistola do coldre para nos deter. Ele, o polícia, já nem sabia onde se meter, presumo (ou quero presumir) consciente do abuso que tinha acabado de cometer, talvez motivado pelo desespero de dias sem nos conseguir meter as mãos em cima. Um de nós, que se “esticou” mais nas queixas, ficou detido durante algumas horas na esquadra da Encarnação e teve que ser o pai a tirá-lo de lá.
Tantas histórias daquele lugar me enchem a memória. Os frutos vermelhos que arrancávamos dos arbustos e que comíamos como sendo o nosso “remédio”, as cenas de pedrada com os “charlôs” que viviam nos prédios brancos em cima dos nossos – e que por isso tinham logo a vantagem geográfica do lado deles – e, claro, as primeiras paixões vividas nos arredores daquele poço onde um dia alguém me iniciou no tabaco. Travei o cigarro todo para me fazer homem, apesar dos meus parcos 11 anos, deitei-me e vi as ruínas a girarem a mil à hora. Com aquela idade, já podia palmilhar o bairro todo - nas férias só ia a casa para comer e pirava-me rapidamente - sem que os meus pais se preocupassem. E se calhar boas razões teriam para isso.
Os anos foram passando e os disparates aumentando, especialmente com o advento do PREC. Criámos o MRLO (Movimento Revolucionário de Libertação dos Olivais), pichámos tudo o que era paredes com as siglas do movimento e era, claro, no poço que reuníamos o Comité Central. Vieram as primeiras bebedeiras, inauguradas em casa de um amigo cujos pais estavam para fora. Decidimos experimentar um pouco do líquido de cada garrafa que eles tinham na garrafeira e horas depois pensei que ia morrer. Mais tarde, as motos, e com elas o reencontro com as forças da autoridade, com as suas Casal Boss atrás de nós num novo jogo do gato e do rato.
Hoje, quando volto ao bairro - onde os meus pais ainda vivem - desconsola-me a total ausência de crianças a brincar na rua. Em cima da nossa relva, repousa há demasiados meses um estaleiro que dará origem a uma nova estação de Metro. Entendo a vantagem de tal coisa quando um dia esteja a funcionar, mas não deixo de me arrepiar com o inevitável bulício que irá trazer àquela zona, que ficou para a história como a forma mais pura do modelo corbusiano (saído da Carta de Atenas) alguma vez experimentado em Portugal.
enviado por: Pedro Prostes da Fonseca
O facto é que a 20 de Junho de 1965 (sei a data de cor por ter sido na véspera de fazer três anos) eu, os meus dois irmãos mais velhos e os meus pais passámos a dormir num novo território, quase sem carros, com matagal a envolver ruelas. Mesmo à frente da minha casa, um poço fazia as delícias dos “ciganos” – nome a que baptizávamos todos os miúdos pobres que desafiavam a nossa segurança. Recordo-me bem desse poço ainda aberto, com duas tábuas de aspecto duvidoso (leia-se podres) em cima, e das lendas que o acompanhavam. Por entre as tábuas atirávamos pedras para tentar perceber a sua profundidade. Era fundo.
Já não sei dizer quando é que a CML decidiu “recuperar” o poço e as arcadas, vestígios de uma quinta secular dos Olivais. Éramos miúdos mas ficámos horrorizados com o resultado, de tal forma que – lembro-me – termos comentado que para terem feito aquilo mais valia terem deitado as “ruínas” abaixo.
Nao me parece que a nossa irritação tivesse a ver com uma consciência patrimonial, mas talvez com o facto de terem tirado magia ao nosso brinquedo.
Mas, adiante, com o tempo – e o fim das barracas que envolviam o bairro -, as ruínas cada vez foram mais um espaço nosso, dos putos que viviam nos prédios altos da Rua General Silva Freire. Era ali que escondíamos os maços de cigarros, nas heras que trepavam pelas arcadas, e em cima do tampo do poço – já devidamente cimentado – conversávamos sobre tudo e nada até altas horas.
Nessa altura já o capim dera lugar à relva, onde as árvores eram colocadas – a nosso ver – para estragar os nossos campos de futebol. Conclusão: à noite íamos com uma serra e cortávamo-las (a prova de que a ecologia era para nós uma ideia distante). Dias depois, novas eram plantadas e assim se fazia o jogo do rato e do gato.
Também as ruínas serviam as “forças de autoridade”, que ali se escondiam para tentarem fazer “refém” a nossa bola, uma vez que a nós dificilmente apanhavam. É que era proibido jogar à bola na relva, e por essa "perigosa transgressão" várias vezes nos levaram para a esquadra. Numa delas - não tínhamos mais do que 13, 14 anos -, fomos o caminho todo a insultar um polícia que tinha tirado a pistola do coldre para nos deter. Ele, o polícia, já nem sabia onde se meter, presumo (ou quero presumir) consciente do abuso que tinha acabado de cometer, talvez motivado pelo desespero de dias sem nos conseguir meter as mãos em cima. Um de nós, que se “esticou” mais nas queixas, ficou detido durante algumas horas na esquadra da Encarnação e teve que ser o pai a tirá-lo de lá.
Tantas histórias daquele lugar me enchem a memória. Os frutos vermelhos que arrancávamos dos arbustos e que comíamos como sendo o nosso “remédio”, as cenas de pedrada com os “charlôs” que viviam nos prédios brancos em cima dos nossos – e que por isso tinham logo a vantagem geográfica do lado deles – e, claro, as primeiras paixões vividas nos arredores daquele poço onde um dia alguém me iniciou no tabaco. Travei o cigarro todo para me fazer homem, apesar dos meus parcos 11 anos, deitei-me e vi as ruínas a girarem a mil à hora. Com aquela idade, já podia palmilhar o bairro todo - nas férias só ia a casa para comer e pirava-me rapidamente - sem que os meus pais se preocupassem. E se calhar boas razões teriam para isso.
Os anos foram passando e os disparates aumentando, especialmente com o advento do PREC. Criámos o MRLO (Movimento Revolucionário de Libertação dos Olivais), pichámos tudo o que era paredes com as siglas do movimento e era, claro, no poço que reuníamos o Comité Central. Vieram as primeiras bebedeiras, inauguradas em casa de um amigo cujos pais estavam para fora. Decidimos experimentar um pouco do líquido de cada garrafa que eles tinham na garrafeira e horas depois pensei que ia morrer. Mais tarde, as motos, e com elas o reencontro com as forças da autoridade, com as suas Casal Boss atrás de nós num novo jogo do gato e do rato.
Hoje, quando volto ao bairro - onde os meus pais ainda vivem - desconsola-me a total ausência de crianças a brincar na rua. Em cima da nossa relva, repousa há demasiados meses um estaleiro que dará origem a uma nova estação de Metro. Entendo a vantagem de tal coisa quando um dia esteja a funcionar, mas não deixo de me arrepiar com o inevitável bulício que irá trazer àquela zona, que ficou para a história como a forma mais pura do modelo corbusiano (saído da Carta de Atenas) alguma vez experimentado em Portugal.
enviado por: Pedro Prostes da Fonseca