segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Da Jovialidade dos Cafés dos Olivais

Era uma vez, once upon a time, il était une fois, es war einmal, (em todas estas línguas aprendi a falar nos Olivais)...meia dúzia de cafés num bairro jovial...Eis alguns dos nomes de que me recordo dos famigerados cafés dos Olivais, lugares muito vivos de encontros, convívios, troca de olhares, murmúrios sobre este e aquela, centros de decisão de aventuras e caminhadas, cinemas e bulícios, revoluções e evoluções, teatros (Comuna) e concertos (Cascais Jazz, festa do Avante de outros tempos, concertos Gulbenkyan, Hot Club, ai, aquela Praça da Alegria de alegre memória jazística), praias e piscinas, festas em «casa de» e passeatas românticas no Seminário dos Olivais, pontos de reuniões múltiplas e, por vezes, centros de acesso a outras maravilhas, entre uma bica ou uma imperial com tremoços (ainda existem os tremoços?), um cigarro e um sorriso, gargalhadas de inverno e primavera, uma rápida leitura ao jornal...O «Tó», o «Cheira Mal» (este tinha também outros nomes, creio que também lhe chamavam «Rescumenga» e o «Zé»), o «Belo Horizonte», a «Nanu», o «Gordo» (nunca lá entrei mas sei que era famoso, sabe-se lá porquê...), o «Cabeça de Touro» do famigerado corvo, negro e atiradiço, de bico amarelo pronto à mordidela, o Sorraia (sempre muito queque), um outro café no largo do Sorraia e de que não me lembro o nome, mais tarde alargaram o espaço de baixo e fizeram esplanada fechada onde serviam um belo cozido à portuguesa, e, lá para o Norte, um tal Tábuas, onde entrei uma vez ou duas, aquilo era do clã do Norte...Todos eles passaram por várias fases de remodelação estrutural e humana. A fauna humana também variava de café para café, o Tó começou por ser «queque» e o «Rescumenga» menos «queque», mas, mais tarde equilibraram-se, ao bom estilo do bairro dos Olivais, bairro criado para todos os estilos e feitios e tipos de jovialidade. O «Tó» tinha a vantagem de possuir uma pequena papelaria onde comecei por comprar Tio Patinhas e folhas de cartolina para os Trabalhos Manuais, depois Tintins, postais de aniversário e cadernos espiralados e, mais tarde, o Sete, de boa memória, que me informava de tudo o que era concerto em Portugal, e o famigerado SG Filtro, que vim a abandonar em favor do Português Suave. O «Tó» era suave...O «Cheira Mal», menos suave, pululava de imperiais e tremoços e de muitas beatas no chão, mas tinha um ar alegre airoso no meio da confusão do futebol, por vezes, transmitido lá pelo televisor no alto (antes era a preto e branco, agora é todo preto e moderno e a cores, plasma, acho eu). Era menos suave, mas regurgitava vida. O Sorraia... bem, era o Sorraia, lugar de lanches familiares com aquela belíssima pastelaria e o bolo-rei do Natal, muito bom, ainda hoje por vezes o lá compro. O Nanu também balançava entre estilos de fauna, sempre muito animado e comprido até lá ao fundo, a começar pela esplanada, ali, a dar mesmo para o 21. Perto do Nanu, havia o «da dona Rosa», mais tasquinha, com uns belos caracóis de Verão...Ah, e por caracóis e caracoletas grelhadas evoco aqui o meu querido Palmeiras, lá para os Olivais Velho, zona linda e antiga, pequenina, com igreja e palmeira e tudo, onde ainda hoje vou, gosto da esplanada, do sol, da palmeira, dos caracóis em Julho e dos «secretos» no Outono, lá dentro...Pois do «Gordo» pouco poderei dizer, a não ser que era famoso, sabe-se lá porquê...um dia cheguei lá perto, aquilo era uma roda viva de gente a entrar e a sair, todos muito atarefados...O Belo Horizonte também me foi simpático, recordo umas tardes de Verão lá fora, na esplanada, a fauna também mista, via-se de tudo, mas era também algo suave...O Tábuas tinha nome, quando o clã do Norte falava do «Tábuas», a curiosidade minha, eu, do clã do Sul, despertava, era como se algo de esotérico lá se passasse...enfim, havia uma certa ideia de que o clã do Norte era uma espécie de elite aristocrática. O «cabeça de Touro» era onde iam «lanchar» outras famílias, um lanche mais virado ao caracol e à imperial do que aos requintados bolitos do Sorraia, havia sempre muitos homens de bigode e camisa deslavada, cheirava a cerveja entornada e a vinho tinto e não era bem lugar que se «frequentasse» até...se equilibrar também. Sofisticou-se. Já não há barris de vinho derramado e o corvo andará por outros céus. Tenho memória de uma certa manhã no «Cheira Mal», onde olhei olhos nos olhos os olhos mais azuis da minha vida, de uma tarde no Tó, a discutir a revolução de Abril, aos quinze anos, de uma noite na Nanu onde um grupo alegre, jovial, pois então, o meu, entrou só para comprar uma garrafa de whisky para continuar a noite, de um anoitecer na «D. Rosa» nos caracóis, depois da praia, com um livro do Alberto Caeiro cheio de areia nas mãos e uma espécie de desgarrada do «Guardador de Rebanhos», de um belo fim de tarde de Verão, no «Belo Horizonte», com um gupo animado, em alguém me fez um elogio amigável que me deixou feliz, de um jantar no «cabeça de Touro», já no tempo da sofisticação e do cozido à portuguesa, das manhãs em que nos encontrávamos e, indecisos, não sabíamos bem se continuaríamos a conversa e os cigarros pelos cafés ou em casa de alguém...enfim, outras eras, antes dos cafés virtuais em que toda a gente fala mas ninguém se vê. «Foste aoTó? Viste o João? A Ana apareceu?»...«Vai ter ao Nanu, depois falamos»...«Aparece no Cheira Mal logo à tarde»...«'Bora, vamos ao Belo Horizonte»...Hoje em dia é mais: «foste ao Olivesaria? «Já viste o que está no A ver O Mundo?»..«Ah, vai ao Bibliotecário da babel e verás!»..«Há muito que não vou aos Amigos de Alex, e tu, tens ido?»...As vozes ecoam agora no ciberespaço, mais do que nos cafés onde deixei de ir, com pena.
Muito poderia ainda dizer sobre os cafés dos Olivais, pelo menos, daqueles que melhor conheci, mas a ideia apanhou-me num relâmpago e resolvi colocar tudo isto já a preto e branco antes que a memória me leve as imagens e os nomes, as tardes e as noites, o cigarro, a imperial e a bica e os rostos de todos aqueles que conheci e vejo ainda ou deixei de ver, uns levados pela vida, outros pela morte e que saudades. Os donos também eram umas figuras, uns mais bem-humorados do que outros. Creio que o senhor António era o dono do Tó e o senhor Zé era o dono do «Cheira Mal»; dos outros, não me recordo ou nunca soube a quem pertenciam. Não faz mal. os cafés não se importam, mudam de dono e de nome como quem não quer a coisa, mas guardam a memória milimétrica das coisas nas paredes, no chão, no tecto, num algures espacial sem nome. Um dia destes, vou aos Olivais e farei uma ronda pelos cafés, só para ver como as coisas estão. Sei que já lá não te encontrarei, amigo, mas fica para a próxima...vida. Até já.
por Maria Correia