quarta-feira, 18 de junho de 2008

a dobradinha

Ao fundo da rua espraiam-se bólides de madeira, quase duas dezenas. Estão pintados de todas as cores e imitam os carros do Fittipaldi, do Stewart, do Cevert, do Ickks com um rigor quase ‘veneratório’. Em redor deles há uma multidão de miúdos e graúdos tão tumultuosa como as que se vêm nas grelhas de partida das corridas que ali se imitam. Há razões para isso. Estes carrinhos de esferas são especiais e enchem o olho de todos os que se habituaram a vê-los apenas como uma tábua. Têm dimensões regulamentadas, inspecções técnicas rigorosas, cargas escondidas para dar lastro, ailerons, bancos e asas, segredos na lubrificação dos rolamentos, mas sobretudo são um primor para os olhos, assim todos aperaltados no início da Rua 5, debruçando-se sobre a descida que os fará competir. Já todo o bairro por ali sabe que em fim-de-semana de grande prémio haverá corrida de carrinhos de esferas no domingo pela manhã e por isso ali se juntam entusiasticamente para admirar a competição .

Após uma semana de treinos cronometrados ganham a primeira linha da partida os carrinhos de esferas vermelhos - são Ferraris. No da esquerda estou eu, embora receie que isso não se repare bem. Aceno folgadamente aos meus irmãos, mais novos. O outro, o mais velho, está atrás de mim na grelha e por isso vou-me virando para trás em claras provocações com a cabeça. Todos temos capacetes feitos dos barris de Skip onde recortámos a x-acto a viseira e cujo topo abaulámos, e que depois pintámos na cor dos originais. O meu é vermelho e branco, como o do Arturo Merzario. Está calor e sinto-me distante do mundo com a visão assim estreitada pelo capacete e o cheiro do cartão misturado com o odor químico a lavado dos restos de detergente. Naqueles breves momentos antes da partida ainda me pergunto se os meus pais, e os pais dos outros, ali na beira do passeio, saberão reconhecer-me assim tão equipado, logo ali, na pole position. Depois de pretender garantir uma boa largada essa é seguramente a minha segunda preocupação.

Aproxima-se a hora e fixo-me na bandeira que vai agora sendo levantada pelo Jaime, cinco, quatro - será que pus demasiado petróleo nos rolamentos? - três, dois - e tinha de ser logo hoje que a minha mãe haveria de descobrir que tinha ido ao óleo da máquina de costura - partida! Podem dar-se 3 impulsos apenas, e é importante não esquecer, senão será a desqualificação. Esta é a parte mais perigosa. Fixamos a mão no alcatrão e esticamos com quanta força tivermos o braço para dar embalo o carro. O primeiro já está - o alcatrão está morno, e enquanto preparo novo impulso exulto por me ver livre das temíveis pisadelas que os rolamentos fazem nos dedos. Segundo impulso. Sinto de súbito um impacto por trás e isso faz-me perder eficácia no momento em que me ia esticar. Três, rápido que há que recuperar. Passam-me o Chico, meu companheiro de equipa e o João, transformado em Ronnie Peterson. Atrás houve ‘molhada’ e presumo que já não seguimos todos.

A pista é desenhada a giz ao longo da rua de alcatrão que desce até às vivendas de lá debaixo. Ziguezagueia em toda a sua largura e aproveita cada obstáculo da forma mais escrupulosa possível. A próxima curva à direita é das piores, quase gancho, e devemos evitar derrapar os carros pois isso faz-nos perder muita velocidade. O João discute com o irmão o topo da corrida, logo ali ganhando-me alguma distância, e agora sobem os dois pela rampa do passeio da casa dos sabbo para descerem na outra à frente da casa do carlitos e voltarem ao alcatrão. Agora é a minha vez e sinto bem a vibração do empedrado. Mantenho-me em terceiro. Segundo!, segundo!, o João foi desqualificado. Em cada curva há um fiscal de corrida – os nossos irmãos mais novos – que deverá levantar a bandeirola se algum de nós cortar os limites da pista. O João já foi! Entretanto sou abalroado por trás, o Nica pois claro, quem poderia ser mais! O carro derrapa, demasiado, demasiado, reequilibro-o ainda com o peso do meu corpo, em contrabrecagem, mas levo outro toque e sou empurrado para a berma da estrada. Parado. Passa um, passam dois, controlo a raiva e preparo o empurrão – nestas circunstâncias cada concorrente pode dar apenas um impulso para ganhar velocidade.

Mais de meia corrida e entramos agora na parte mais rápida. O Chico vai ganhar, viva! O Nica e o Miguel disputam ferozmente o segundo lugar - de cabeças baixas como se isso os ajudasse a cortar o vento, um imitando a trajectória do outro - mesmo antes de entrar na longa recta que os levará até à meta. O meu impulso foi bom e nesse embalo vou aos poucos recuperando distância. Já quase resignado a um lugar fora do pódio, não deixo ainda assim de reparar, orgulhoso, que algum público vai puxando por mim. E depois o imprevisto acontece! Os dois na minha frente engalfinharam-se nos eixos de trás, e acho que o Nica partiu mesmo a travessa de madeira do lado esquerdo. O Miguel acabou por dar um peão completo, mas controlou-o, forçou a derrapagem e conseguiu manter-se em pista, e vai agora recuperando a velocidade com embalos do corpo. Eu venho atrás, mas mais rápido, de lá detrás, já menos atrás, já só atrás. O Chico cortou a meta, levantou-se como uma mola do Ferrari e incita-me agora nestes metros finais. Zzzzzzzzz, quase em cima da meta, perante extasiados aplausos, consigo assegurar o segundo lugar e fazer a dobradinha. Foi a melhor corrida da época … e sem sequer usar o dispendioso óleo da Singer (uma novidade estimada, máquina de costura eléctrica já) da minha mãe.

Nota: Sinceramente não sei se alguma vez chegámos a fazer a dobradinha, mas confirmo que estes dois pilotos da Ferrari foram os vencedores absolutos dos dois campeonatos que se realizaram entre as épocas de 1974 e 1975. O feito é ainda mais assinalável já que éramos os irmãos mais novos em corrida do tipo do Tyrrel e do tipo do Lótus JPS. Muito mais novos aliás. Quase 2 anos.