quarta-feira, 28 de novembro de 2007

o muro (1970)


O muro onde abancamos nos intervalos das brincadeiras e que ladeia a entrada do prédio é, do lado oposto, muito alto. Mais alto que o meu pai. Para se olhar para ele lá debaixo, por onde se sai da cave, tem de se esticar o pescoço todo para trás.

Acho que foi o Miguel quem teve a ideia. Como é ele o mais velho está sempre a ter estas ideias que eu acho servirem para nos ir mostrando quem é o chefe do grupo. Nem hesitou. Num instantinho foi parar à relva, rebolando-se para amortecer a queda. No resto da tarde, um por um, desafiados, todos foram saltando o muro. O Paulo trincou o lábio e foi a correr para casa, em choro. Foi o herói da tarde. Olho para as gotas de sangue que ficaram na calçada e desejo que não seja nada de grave. Ele é o meu melhor amigo.

Já está quase na hora do lanche, e já saltaram quase todos. Só falto eu. Mas a altura assusta-me. Ao princípio ainda tinha deste ou daquele palavras de incitamento, mas agora começo já a sentir a troça deles. Já sei o que vai acontecer a seguir - que sou o bebé do grupo, que assim nem sequer devia poder fazer parte do bando, que sou sempre quem os deixa ficar mal. É quase verdade isso. Mas é porque sou o mais novo, muito mais novo. Tenho quase menos 2 anos que o que vem a seguir, o Tiago, que já vai já fazer 9 anos.

Estou inseguro, e magoado. Apetecia-me agora não estar ali. O meu irmão, o único que me podia ajudar, pôs-se do lado deles, também ele rindo de mim. Sinto-me muito sozinho. E com uma enorme raiva por não o ver tomar o meu partido. Bastava-lhe que contasse como ontem eu tinha feito frente à malta do Lote C, e talvez eles reconsiderassem. Mas ele nada disse, juntou-se a eles. Estou furioso com ele. Isso nota-se e serve para ele cochichar qualquer coisa, lá no meio do grupo. Sei que é sobre mim – oiço os risos - mas não sei o que ele disse. Estou afastado uns dois metros deles, uma distância agora intransponível, por isso, o que eles falam, torna-se ininteligível para mim. Sinto-me mesmo muito sozinho.

Chegou a hora do lanche. É a minha última oportunidade, mas mais uma vez não consigo. Aquilo é muito alto, é alto demais para mim. Começamos a destroçar. Eu retorno para casa sob um insinuante coro de troça. Estou envergonhado e sinto-me frágil. Mordo o lábio para não chorar, que isso ainda agravará mais a chacota que já sinto sobre mim. Agora o alívio de chegar a casa. A Srª Bia pergunta-me porque choro enquanto me dá o lanche. Mas eu estou chateado, não respondo. Não respondo a ninguém. E está-me a custar imenso estar ali, a tomar o lanche com o meu irmão. É dele que esperava auxílio. Eu ainda sou muito pequeno, e ele já é grande. Devia estar do meu lado.

...

A minha mãe está enfurecida. Nem repara a força com que carrega no algodão. Ardem-me imenso os joelhos, e assim ela não está a ajudar nada, mas nem me atrevo a queixar. Pergunta-me insistentemente sobre o que me passou pela cabeça para ir lá abaixo já ao cair da noite e atirar-me daquele muro altíssimo. E que se me tivesse aleijado a sério? Assim, sozinho, quem haveria de dar comigo? Eu ainda tento explicar que era uma aposta, nada mais me ocorre para explicar a importância que aquilo tinha cá dentro de mim. Mas ela não percebe as minhas palavras, não percebe como aquilo foi importante para mim, nem tem orgulho em mim. E ver-me assim tão insuflado ainda a encoleriza mais. Dobra-me o castigo. Sorrio indisfarçavelmente - àquele castigo sinto-o como o reconhecimento da minha façanha. Está furiosa. E eu não lhe consigo explicar que gosto muito dela, que me sabe muito bem tê-la ali a tratar de mim. Que nestas alturas ainda gosto mais dela.

O meu irmão está lá ao fundo, a ver televisão. Mas sei que olha pelo canto do olho. Também agora ele finge que não é nada com ele. Que nada sabe do assunto. Sei que ele agora me admira um pouco, mas também sei que nunca mo dirá. Eu não vou dizer aos nossos amigos que saltei, estou chateado com eles, mas queria imenso que ele lhes contasse isso. Mas sei que ele não o vai dizer. Agora que já me sinto melhor (e não precisei dele para nada), já só me falta acertar contas com ele, ele vai ver. E não lhe vou falar pelos menos durante 2 dias.





(rascunho do Fula escrito nos tempos em que connosco partilhava a casa das máquinas... agora, de perdido lá nos confins do blogue vem a lume publicado por Benguela)