quinta-feira, 19 de junho de 2008

O Futebol e a Cidade - Lisboa

"Poderia começar por qualquer outra. Esta é uma cidade de encanto, como de encanto são todas as que reúnem gentes com vida, que criam sua alma e seus encantos guardam, fazem sua e dos seus a história de uma vida, de uma vida com histórias. De futebol também!
Começo por ela porque a esta cidade pertenço, é minha e dela sou, por mais que viva fora ou morra longe!
Nos idos de sessenta, década que me viu chegar e por onde passeei os anos da minha infância e escola primária, o panorama do futebol em Lisboa, como aliás no resto do País, via nascer, explodir e ganhar contornos de mito um senhor chamado Eusébio da Silva Ferreira. Todo o endeusamento o ‘ Pantera Negra ‘ justificou, oferecendo títulos, golos inimagináveis, fotos de uma vida, ‘ petardos ‘ que seriam sua imagem de marca, culminando com um conto de fadas tornado realidade quando em Julho de 1966 e depois de facturar por duas vezes ao Deus Brasil, nos oitavos-de-final do Mundial de Inglaterra, pegou em si mesmo e numa nação atropelada três vezes por uma espécie de David norte coreano, transformando uma inevitabilidade noutra inevitabilidade: 0-3 em 5-3, quatro golos do Rei.
Tudo isto fez com que nas escolas primárias de toda a cidade, no crucial momento de ouvir o coração e jurar o amor eterno, houvesse uma alternativa à magia dos ‘ Cinco Violinos ‘ que tanta alma haviam vestido de verde e branco no final da década de quarenta. Um pouco antes, em 1946, três senhores com os nomes Capela ( guarda-redes), Vasco e Feliciano - à história passados como ‘ as três torres de Belém’- haviam puxado para as cores da ‘ religião ‘ azul e sua Cruz de Cristo, uma série de crentes em dia de votos eternos. Eternos porque .... de Clube NUNCA se muda !
Explica este intróito um pouco das movimentações dos ‘ alfacinhas ‘ em dia de missa e romaria ao estádio. E se a ida à igreja manteve inalteráveis os seus horários, os tempos modernos de imposições e horários televisivos tornou inviável a saída directa de uma para outra devoção. Separando no tempo os acontecimentos de cada tribo e sua cor, transformou um espaço de romarias simultâneas num de peregrinações dispersas por um período que pode ir da noite de 6ª feira até à de 2ª. Em Lisboa e no ‘seu’ futebol, passámos a ver os magotes de gente em comunhão e irmandade com o mesmo emblema, a encher o trajecto até ao estádio, local de culto, com bandeiras, cachecóis - os mais precavidos com a almofadinha para ter um conforto extra no lugar onde sentados iam em busca do seu quinhão de felicidade extra semanal - sem se cruzar e ou dividir cânticos e vivas de apoio.
Desde sempre, de então e até hoje, sentem as sete colinas correr nas suas veias almas de azul e amarelo a circular na Tapadinha do eterno Atlético, de grenat na banda Oriental e seu histórico COL - onde a concentração se faz em tascos com alma e à frente de uma imperial se impõem tácticas e previsões. Pelos lados do Restelo os apaniguados têm garantida uma ida aos pastéis e um estádio com uma paisagem de poesia. Nos bairros daqui e dali, em campos da bola onde habitam clubes de gente imensa e de trabalho, de Palma a Camarate, da Musgueira a Campo de Ourique e outros tantos mais, enchem-se as tardes de cores e credos vários, ganha-se palmo a palmo a sobrevivência ou uma subida de divisão. Por ironia, numa Circular prevista para poucas paragens e estacionamentos, acontece o encontro e paixão de dois emblemas que não se esgotam nem por ali, nem pelas fronteiras do País. O verde e o encarnado da própria bandeira, dividem-se em dois mundos de paixão inigualável no País. Quando se encontram, entende-se a força e profundidade de um termo que qualquer miúdo entende : o derbie !! Um Benfica – Sporting é um momento da mais pura paixão em Lisboa. No País. Nas ex-colónias. No mundo. Onde há gente portuguesa !! Lisboa torna-se assim mais Lisboa !"
[Um texto (catrapiscado de A Jornada) de João Pais, mais conhecido por Jan Jan, portanto, oliveira. Para além disso é também um texto sobre as memórias, as memórias dos bairros e do futebol.E o que a mim - apaixonado pelo pontapé na bola nos tempos da minha juventude mas feroz crítico do peso que o futebol tem em todas as esferas da nossa vida politica e cultural - me dizem as memórias dos jogos de futebol que assisti nas manhãs de domingo, no campo da Almada Negreiros ou no Pote de Água!!!]