Há dez minutos que estou a olhar esta janela.
Tenho este hábito. Sempre que quero ver para dentro aproximo-me de uma janela, de uma varanda e assim fico, a mirar aquilo que em mim subsiste como imagem. Esta é actual, tirada à dias de casa da minha mãe, mas é quase igual a uma com vinte anos. Era a minha janela preferida para esfumaçar. As milhares de coisas iguais que eu fiz durante, parece-me, milhares de anos. Estas tijoleiras de noite são mais bonitas, parecem até saídas de alguma cidade espanhola, há uma harmonia nelas que se enquadra no desenho da paisagem. No lado esquerdo a escola de Nampula. Como eu gostava de ficar doente e não ir à escola para, do alto do beliche, poder, na sorna, ver os vários jogos de futebol. As vozes no pátio. As vozes a correr no pátio. Eu já conhecia os craques, os pintas da bola. Os fussangas. Aqueles que não faziam nada mas que mandavam no jogo. Era divertido assistir a estes jogos sem árbitro.
É falta, é falta!, ouvia-se desde o pátio até à minha janela. Também havia tareia por vezes. Ou, noutras, o filme do jogo parecia que parava, ficava muito silencioso, e eles faziam uma mini-roda onde discutiam um lance, uma jogada. Eu adorava quando alguma professora faltava e, depois de correrem ao som da campainha, retornavam em magote ao pátio para a jogatina.
Todas as casas onde morei, quase todas as casas onde morei, ficavam próximas de um pátio de uma escola. É isso que persiste em mim como imagem. Também nós, no tempo em que os portões ainda não estavam fechados, e se podia franquear com alguma facilidade o muro, passávamos tardes inteiras a jogar à bola no pátio da escola. E por vezes aparecia a ciganada, para acabar com o divertimento. Já aqui se falou nisso.
O ser de noite torna tudo mais claro para mim. As noites de insónia. O levantar-me da cama para escrever. Eu naquela altura levava-me muito a sério. Um dia, tinha uns quinze anos, resolvi escrever a história de um tipo que, tal como eu, tinha vindo da província para a cidade. Peguei no mapa, baixei o dedo, cai numa terra chamada Arneiros, perto de Freixianda. Um rio, o Nabão, ligava estes dois continentes anões. Eu nunca tinha visto o lugar. Que importava? Misturei a aldeia da minha infância com todos os lugares e memórias campestres que conhecia. Era a história de um tipo que vinha para Lisboa com o sonho de se tornar escritor. Em menos de um ano o romance chegou às quatrocentas e quarenta páginas, altura em que uma palavra,
fim, pôs termo à saga. A certa altura, talvez por achar muito interessante a vida que eu vivia,
repito, eu na altura levava-me muito a sério, o romance tornou-se numa espécie de diário, se fosse hoje, blogue. Depurava o que me acontecia no dia a dia e colocava lá os temas de discussão, a agenda do que nos ocupava. Já não me lembro dos pormenores mas creio que Lisboa não era Lisboa. À imagem dos romances de Somerset Maughan que tanto me empolgavam, Lisboa era Paris. O Martim Moniz uma espécie de Quartier Latin, meio chula, meio operário, meio boémio. Era a súmula dos lugares inexistentes com os lugares feitos de ilusão. Era uma pepineira desgraçada, escrita a tinta permanente, em cadernos escolares de capa azul, meio cartonada, com linhas vermelhas e margem definida. Houve aliás apenas uma pessoa que o leu, o
apicultor, aquele que o vazio ilustra. Ele era da minha turma, da do Fula, e com outros dois dedicava-se a uma estranha prática: observação de pássaros. E morava nuns prédios duplex, mesmo atrás da minha casa, pelo que se tornou uma companhia quando vinhamos dos Viveiros. E ganhei-lhe confiança para lhe contar os meus delírios de escrita (
eu já disse que naquela altura me levava muito a sério?). Um dia começámos a falar, ele disse-me que escrevia, eu também, decidimos que cada um leria, em frente um do outro,
online diríamos hoje, as coisas um do outro. Eu safei-me com quinze páginas de um conto de Natal que depois até reescrevemos a meias, o tipo lá teve de engolir quatrocentas e quarenta páginas comigo a controlar-lhe todas as reacções, todos os trejeitos,
gostaste? Entretanto o livro não resistiu aos meus dezoito anos, nessa altura fiz uma fogueira com todas as minhas histórias e deixei que o silêncio tomasse um pouco conta de mim. Ficou-me a imagem. De uma noite, de uma janela aberta, de um apanhar um pouco de ar fresco enquanto a história não avança. De um escrevinhar que, curiosamente, é o que hoje me volta a ligar a esta janela, a este bairro, a este oliversejar.
2ª Imagem roubada no post acima com imagens sobre a génese dos Olivais