Por alguma razão que não percebo quando chove tenho a tendência para me fechar em mim. Apetece-me nessa altura fazer chá e comer bolachas com manteiga. Desço ali à Rua do Norte, a uma mercearia onde me costumo aviar destes meus pequenos apetites. E quando subo as grandes escadarias deste velho teatro começo a sentir que é em tardes como esta que me agrada (poder) escrever na Olivesaria. Tenho um ou dois projectos na minha cabeça, coisas a que me quero dedicar mas sei, isso é para os dias de sol. Tenho ainda as calças ligeiramente molhadas e esse pequeno toque de água dá-me uma sensação de desconforto confortável, como se as minhas divagações tivessem um corpo físico a que se pudessem agarrar neste naufrágio que parece ser pensar, lembrar. E ao mesmo tempo tardes como esta sempre me deram vontade de ficar sozinho, de me ligar pelos olhos atrás da vidraça, ao movimento de lá de fora, de ver quem se arriscava a atravessar a rua durante uma chuva, e o frio de lá de fora no corpo do outro a aquecer-me o meu, e o vento a fazer dançar os corpos, a levantar pequenos objectos, uma dança, um bailado de partículas e de pequenos seres em arrevoada. E eu cá dentro de casa a ocupar-me, e ao meu espírito, com outras danças. Os discos a tocar na sala. Gostava de ouvir Amália, ela no café do Luso, era o disco preferido do meu pai. Eu dantes pensava que tinha um fado dentro de mim. Gostava de o cantar como nunca soube cantar nada. Deixei de o ter dentro de mim aos poucos. Aliás, eu hoje já não sei tão distintamente o que é o lado de dentro e o lado de fora das coisas minhas. Antes eu era capaz de dizer sem estremecer a voz: dentro de mim tenho uma vontade de. Não interessava o que fosse, se coisa espiritual ou física. Podia ser uma vontade de amoras bravas, de azedas frescas, de relva verde, ou até, de um ramo de árvore para chicotear o ar, fustigando-o antes que ele me consumisse a mim. Eu dizia sem tropeções nem solavancos, dentro de mim. Agora soa-me a estranho. Não conheço o que é dentro/fora de mim. Sei que o meu corpo, como se fosse uma caixa, guarda uma química de cujas improbalidades me ocupo anualmente, quando vou saber do estado da arte. De dentro do meu corpo saiem então sangue e fluídos que, depois de analisados, dizem um pouco sobre o modo como se vive na minha cavidade interior. Mas não me atrevo a dizer que aquilo que penso está dentro de mim. Os meus pensamentos, aqueles de que gosto mais, estão até particularmente fora, em conexão com tudo o que existe. Como se dançassem. Eu não sou apenas este cada vez mais velho corpo físico cuja materialidade reprova um cada vez maior número de façanhas. Ou que tornará, dia após dia, os mais pequenos gestos quotidianos numa façanha, um singular heroísmo. Eu sou tudo aquilo que sou/fui capaz de integrar através da minha percepção. E se já tenho alguma dificuldade de negociar satisfatoriamente a minha compreensão do mundo através das categorias da realidade/irrealidade, com a de dentro e fora parece-me uma missão impossível. Era assim, com divagações que eu me entretinha do lado de cá da vidraça, olhando a água a correr pelo campo de futebol da escola de Nampula. Às vezes havia uns mais afoitos que independentemente da água resistiam e continuavam a jogar. Eu admirava-os, como se fossem os craques dos cromos da minha caderneta. Era como se estivessem ali apenas para me entreter, para não me deixarem naufragar no lado de dentro da sala. Ainda estou a vê-los hoje e já passaram mais de trinta anos. Estão ensopados em água, quando tropeçam sujam-se todos. Quase que, no conforto da minha sala, consigo sentir o desconforto e o prazer da água a escorrer pelo cabelo, pelo rosto. Depois, a chuva há-de passar e começam a chegar os outros, os prudentes. Eu levanto-me. Desligo a televisão que é este meu real encostado à vidraça e vou brincar, talvez atrás do tesouro do arco-íris.
A Vespa e a Gestão
Há 2 dias