Não tivesse vindo cá abaixo buscar as compras que a minha mãe deixara no carro e provavelmente nem repararia naquela inscrição feita na parede do meu antigo prédio, na rua cidade João Belo. Estava noite, o que para além de dificultar a própria memória fotográfica também acrescentou algo de misterioso à mensagem que se ligou, invisivelmente, a mim, ao modo platónico como vivi a minha adolescência nos Olivais. Espero - para reconforto do anónimo apaixonado - que a rapariga do cão do fiat se tenha enternecido tanto com a mensagem como eu.
Não era o Amo-te Daniela, que tantas vezes encontramos grafitado ou desenhado nas paredes, sem um pingo de sensibilidade, de reserva, com aquele desvairio adolescente que faz com que pensemos que as pessoas a quem dizemos que amamos são nossa posse. Não, quem escreveu aquilo ama na sombra. Nem nunca se aproximou o suficiente do objecto da sua paixão. Se o tivesse feito, teria, num dia de sorte, ouvido o seu nome gritado de uma janela, de uma varanda, de um extremo da rua. Sempre se falou alto nos Olivais. Não, o amante é sibilino. Esconde-se, na noite, nas tardes, nas manhãs. Vê-a partir e regressar todos os dias, no seu fiat. Não é um wolksvagen, um opel, um citroen, um peugeot. É um fiat, italiano, temperamental, romântico. A menina do fiat faz parte de um universo sentimental, eivado de romantismo. Ao escrever isto, é como se eu mesmo estivesse a espiar esta história, esta pequena história de amor. Ele, o amante da menina do fiat, espera que ela vá passear o cão, acompanha-a. O que o revela na paisagem humana do bairro. Se o lugar ainda mantém as características daquele onde vivi a adolescência, há dois grandes tipos de pinga-amores que contribuem para o exarcebar amoroso que sempre caracterizou a vida entre oliveiras. Aqueles que, como eu - já me denunciei atrás, agora é tarde para desfazer- que, na sua timidez e acabrunhamento se escondem entre a sombra para ficar ali a ver as horas do seu tempo, do seu enamoramento. E os que - como por exemplo o Bafatá - tentariam arranjar logo um canídeo (comprassem-no, pedissem-no emprestado, atassem uma corda como coleira ao primeiro vadio que encontrassem), para poderem entabular uma conversa que, como um cerco, faria com que a menina do fiat passasse a ser mais uma letra no abecedário dos nossos rudolfos valentinos. Não, o amante inconfessável da menina do cão do fiat, treme só de pensar que a sua amada possa descobrir quem ele é, a sua identidade. No seu anonimato não pode no entanto deixar de lhe dizer que a ama. Ele quer que ela se sinta amada. Que saiba que é amada. É assim a imensa generosidade da platonia: consome-se num ardor, numa incandescência amorosa que não exige nada em troca, mas que tem de partilhar a sua existência apaixonada. E é como se sussurasse: menina, menina do cão, menina do fiat. Para que ela, todos os dias quando sair ou regressar a casa, possa saber que há alguém, tão doce que trata a rapariga por menina, que a ama sem pedir nada em troca. A quem basta apenas o desfiar da página de um romance vivo, feito de passeios com o cão ou voltas no fiat. É pouco? Não, é tudo. A menina do cão do fiat e o seu secreto amante estão à altura das mais altas tradições romanescas do bairro.