segunda-feira, 24 de março de 2008

Velhos


Há coisas tramadas na memória de um amnésico. Há, como disse o Beira há muito tempo a propósito de um amigo, coisas de que nos lembramos e outras que não conseguimos esquecer. Nestes tempos em que da escola tanto se fala, do que fomos, do que queríamos ser, da forma como hoje nos retratamos, aquele velhos do Bolama atirou-me para um fim de tarde nos Viveiros que nunca irei esquecer. O dia em que o Fernando Namora foi à escola falar da sua obra.

É um momento menos simpático, menos lustroso, do qual me envergonhei profundamente pelos anos que se seguiram. Eu não era aquilo que se pode dizer, um beto, ou um facho ou um anticomunista primário. Era um sonhador, como sempre fui. Vinha cá abaixo ao mundo para receber a semanada e ir comprar tabaco ao meu pai e pouco mais. Mas não era um beto a sério. Ao meu irmão lá conseguia de quando em vez vestir as calças de fazenda, os sapatos italianos, os pullovers de marca, e lá ía todo pimpolho fazer de beto para os intervalos das tardes dos Viveiros. E era um bocado do tipo de ir atrás dos outros. Numa dessas tardes um dos meus amigos de ocasião convenceu-me a ir fazer estrilho para um debate que os comunas tinham organizado. Era uma apresentação de um grande escritor, Fernando Namora. Só me lembro, ou melhor, só nunca mais me consegui esquecer, de ter passado uns largos minutos a rir, a chamar macaco, comuna e careca ao Fernando Namora. O episódio passou, eu enterrei-o para o meu canto escuro da memória. Também passaram todos os modismos de que me fui fazendo. Anos mais tarde, estava a ler "O Jornal" e dou de caras com uma crónica de Fernando Namora, intitulada, Os Velhos. Li-a e reli-a sem conseguir deixar de ver aquele homem sentado a uma mesa de sala de aula dos Viveiros a ouvir dois ou três putos estúpidos a chamarem-lhe os piores nomes possíveis. E admirei-lhe a sua coragem, a sua humildade. A partir dessa altura li-lhe a obra toda. E escrevi-lhe umas cinco ou seis cartas, a dizer-lhe quem era e o que lhe tinha feito e a pedir-lhe desculpa. Rasguei-as todas. Porque compreendi que eu não era ninguém, que para o grande escritor aquele episódio não tinha deixado nenhuma marca e que só a mim, só a mim me marcara.