Haverei de escrever sobre isto, os amigos, penso enquanto o carro roda a alta velocidade na direcção Sevilha-Lisboa. Desta vez vamos por baixo, pelo sul, um caminho que eu fiz a primeira vez imaginariamente, quando resolvia o itinerário de uma personagem, a Esmeralda, que durante alguns anos fez a sua travessia do inferno pelos bares de alterne à beira da estrada, entre Huelva e Granada. É o Xai-Xai que conduz. Pelo espelho retrovisor olho-o e vou-me divertindo a tentar descobrir o meu amigo de primeira adolescência. Tinha o cabelo mais comprido, eu sei. Era mais doce também, éramos todos. Ainda não tinhamos tantos tiques, tantos trejeitos, tantos gestos repetidos. Mas parece-me o mesmo, pelo menos fisicamente, pelo menos no pequeno recorte de gente que um espelho retrovisor é capaz de fazer. O seu cabelo escuro, sem entradas nem madeixas brancas ajuda. É claro que mais tarde, quando ele puser os óculos eu vou pensar, ele vai ser o que, de todos, vai ficar mais parecido com o seu pai, mas agora, sem lentes, naquele pedaço de rosto, parece-me tão igual ao que ele era. Ao seu lado está a C. a sua mulher e ao meu lado a D., a minha namorada, e elas, sem sequer precisarem de abrir a boca contam de nós a história que falta mas naquele momento em que o olho é como se a mim mesmo se me visse naquilo que eu também fui e cuja narrativa fui esquecendo. Quando vejo nele, quando consigo ver nele o Xai-Xai de há trinta anos, e porque não me vejo a mim senão através desta projecção, é também a mim que me vejo, há trinta anos. Vou assim, de Sevilha a Lisboa numa viagem que é mais do que isso, uma peregrinação pelas minhas memórias, por memórias que eu não sabia existirem. O leite nido com nesquik arranjado pela Urânia, a empregada do Xai. Aqueles lanches latagões do ZAC que queria crescer, ser forte e robusto. Os fins de tarde, até, do andar debaixo algum dos meus irmãos me virem chamar para jantar - e eu hoje já sei o que o meu filho passa quando eu tenho de interromper as suas brincadeiras com os amigos para o chamar para jantar - e dos quais já não recordo nada senão esse sentimento de conforto que tinha. O pai do Xai que chegava e que trazia sempre fato e gravata e uma mala preta de negócios. As escavações de fósseis no termo do prédio. As tardes de futebol. A certa altura eu e o Xai declinamos em voz alta os nomes das equipas, dos craques. Não tenho nostalgia pelos lugares perdidos e a infância será sempre um lugar perdido. Tenho algum desconsolo porque por vezes me parece que o céu era mais azul, que o sol e o próprio tempo fiavam de outra maneira, mas não tenho nostalgia. E o mais curioso de tudo isto: ao olhar os objectivos deste blogue, o destravar do rememorejar, poder-se-ía pensar que o que verdadeiramente nos une é uma espécie de regresso ao passado. E não é, descubro naquele recorte de rosto que o espelho retrovisor consegue capturar, como já o tinha intuído no bem estar com que me sentava àquelas mesas de pinchos e tapas, aquilo que verdadeiramente nos une, e o Fula disse-o dois ou três posts abaixo, é a percepção daquilo que nunca saberíamos entender há cerca de trinta anos: que a diferença pode aproximar. Vejo-me neles, neste pequeno grupo de ciclistas para a fotografia das ruas de Sevilha, no gosto de acamaradar, de descobrir, de partilhar. A diferença e o tempo trataram-nos bem, entretanto.
quarta-feira, 10 de dezembro de 2008
Apontamentos de Sevilha
A certa altura os nossos passos levaram-nos àquela igreja, da qual já não recordo o nome, que tinha um monumental altar, todo encrastado em talha, do chão até ao tecto. Era monumental. Espalhámo-nos pela ala lateral para não interferirmos com o ofício religioso que decorria. Na zona central da igreja, no púlpito, um padre falava aos seus fiéis, muito poucos. Aliás a dimensão do espaço, o gigantismo da sua construção, da pedra, da talha e de todos os ornamentos que mais pareciam fazer desaparecer a pequena legião de paroquianos que escutavam o sermão, já de si introduzia uma nota dissonante: o padre perorava sobre o peso dos objectos na nossa vida, da manifestação apoteótica do material, e fazia-o num lugar que era por si próprio a exaltação e a exarcerbação da ostentação e da conversão das paisagens imateriais ao domínio do objecto, da matéria.
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