sábado, 3 de novembro de 2007

A revolução foi uma ludoteca

Insisto na memória deste 25 de Abril em calções, de palmo e meio. Aderi à UEC em fins de 74 e ainda não ia a meio 75 já eu entregava o meu cartão de militante e dizia adeus a uma das experiências mais fantásticas da minha vida, principalmente graças à camaradagem do Xai-Xai, o amigo que me levou até ao Centro de Trabalho do PCP na Rua de Entrecampos.

- Anda comigo inscrever-te na UEC.

Vamos. Era o tempo dos melhores amigos e a estes nunca se dizia que não. Porque nunca nos levam por maus caminhos. Assim foi, assim será. Fomos a pé dos Olivais até ao Campo Pequeno, onde perto, na Rua de Entrecampos, funcionava um Centro de Trabalho do PCP. Não tínhamos dinheiro para ir e vir, fomos a pé para lá e guardámos o dinheiro para a volta.
Eu pensava que nos tinhamos inscrito. E que o que se tinha passado tinha sido a consequência natural de já sermos militantes. Mas memória para cá, memória para lá, redescubro que não. O que se passou foi que não fomos aceites naquele centro de trabalho por sermos muito novos. Fomos recambiados para o Centro de Trabalho do PCP nos Olivais, que ficava num rés-do-chão dos prédios da Vila Catió, e onde nos inscrevemos não no PCP mas na UEC. O que torna mais caricata a situação que se seguiu. À saída demos de caras com uma bilha de barro que dizia: " Camarada, o teu partido precisa do teu contributo". Nem pestanejámos. Colocámos lá os quinze tostões do bilhete de autocarro e viemos a pé, à chuva.
Havia uma coisa que nem eu nem o Xai-Xai previramos. Era engraçada a vida partidária, a minha controleira, era uma espécie de irmã mais velha, mas mesmo naquela altura não era confortável ouvir, tanto à esquerda como à direita, o " uec-uec, abriu a caça aos patos" com que todos nos xingavam. Aliás, essa estranha unicidade xingatória aos comunistas era a expressão do maior consenso político ocorrido em Portugal antes das eleições do general Eanes. E um dia, o dia em que eu descobri , no liceu D. Dinis, pela boca do Prof. Lourenço, que ao discutir com o Luis Trotski e com o Paulinho da UEC se virou para este último e lhe disse que a União Soviética até tinha o COMECON, aí foi demais.
Apressei-me a voltar a casa e a bater à porta do Xai-Xai.
- Preciso de falar contigo.

Com ar grave contei-lhe tudo. Da discussão entre o Trotski, o Paulinho e o Prof Lourenço, na sala de convívio do D. Dinis. E como este tinha calado todos quando lançara o seu demolidor:
"- Porque a URSS também tem o COMECON."
O Xai-Xai assegurou-me que não sabia, senão tinha-me contado. Respondeu-me:

"-Também eu já não aguento mais isto."

Isto, era a vida ingrata de um militante quá-quá. Não sei como era com os comunistas mais velhos mas um dia, se o Partido Comunista conseguir vir a tornar-se numa entidade tão respeitável como a Igreja Católica, devia abrir processos de beatificação aos seus militantes quás-quás. Levávamos porrada dos emrrs, dos udps, dos mirns, basicamente levávamos porrada, a variante de quem dava já chegava a ser desinteressante para nós.


[Lembro-me, quer dizer, lembraram-me neste processo de aferirmos a memória a meias, que um dia, era sábado, tinhamos um encontro de patos dos olivais, o ponto de encontro era o Pão de Açúcar. Eu atrasei-me porque, à saída, os meus pais, que estavam sentados na mesa de camilha que havia no quarto da criada (que não tínhamos), me obrigaram a fumar um cigarro, o primeiro cigarro, com eles. Eles sabiam que eu fumava há uns tempos e resolveram aceitar e quiseram que eu fumasse ao pé deles. A revolução foi uma ludoteca para tudo, até para a educação. E por isso me atrasei e só apanho o meu novo controleiro a subir e a descer com a sua motoreta e a dizer que tinhamos todos ido para o Técnico, que os emerres estavam a cercar aquilo tudo, que havia porrada. Havia porrada era um eufemismo deste nosso controleiro para dizer, bora aí, vamos levar porrada dos émerrs.]

Era dura a vida de um militante quá-quá. Éramos gozados pelas miúdas como se fossemos uns seminaristas com uma vida casta, asceta, longe das drogas e das traições da iálma, com a vida a mando de controleiros, irmãos mais velhos que nos orientavam adentro da epopeia comunista. O Xai-Xai sofria especialmente por causa dos olhares de censura da Laura, uma rapariga da UDP que, enquanto o xingava, desejava-o : " uec-uec, abriu a caça aos patos" . E o pobre do Xai-Xai, um excelente moço, sem saber para que lado é que se havia de deitar.
Desfizémos ali mesmo o nosso pacto. Pegámos no jornal do Avante e, como em todas as semanas, fomos buscar os microfones duplos da aparelhagem lá de casa dele e lemos, alternadamente, em emissão radiofónica privada, com nobreza na voz e firmeza no coração, na última página do Avante, a lista completa do comité central do partido comunista português. Depois disso olhámo-nos e combinámos telefonar aos nossos controleiros. Eu não sabia que o PCP e a UEC eram tão conservadores como pude constatar quando falei com o meu controleiro.
"- Viva. Precisava de falar contigo. Tenho que sair da UEC...
- Porquê, camarada?
- Por causa do Come
... - menti. Algo me disse que estava a explicar as coisas pelo caminho mais complicado. - ...por causa dos meus pais. Eles não gostam que eu seja da UEC.
- Camarada, a família está primeiro!- Disse-me do outro lado o meu controleiro. E logo ali me prometeu tratar de tudo para me poupar a mais chatices, nunca mais ninguém me faria perguntas.
E assim foi comigo. Porque o Xai-Xai não pôde explicar a história da sua Laura. Ela não tinha, nos códigos conservadores dos comunistas, o mesmo peso que a minha família. A Laura seria logo etiquetada como um desvio pequeno-burguês. Lá acabou a frase e disse que era por causa do COMECOM.
Nas quatro semanas seguintes um misto de pena e remorso acompanharam-me enquanto via o Xai-Xai a reservar o melhor da sua tarde percorrendo as alamedas do Vale do Silêncio, ombro a ombro com o seu controleirom que talvez lhe explicasse aquilo que eu só mais tarde vim a descobrir, numa aula de nocões práticas de economia, em que o tema foi a EFTA e o ...COMECON .
[Nota: Este post foi revisto em 6.11.07 tendo em conta as sugestões editoriais deste blogue. E que, em abono destas, não prejudicam em nada a compreensão da narrativa. Mantiveram-se apenas os nomes que fazem parte da nossa memória colectiva. Quanto à Laura, que nunca existiu - foi só para pôr um pouco de telenovela na estória (desculpa lá, Xai-Xai) - fica em itálico como merecem todas as personagens imaginárias]