Toda esta conversa sobre o RAP e os Gatos fez-me lembrar uma conversa que tive há uns anos com o Miguel Viterbo, um dos fundadores das Produções Fictícias, projecto empresarial que assinou muito do melhor humor que por cá se fez e que, para além de ter sustentado (através dos textos do Nuno Artur Silva) uma reviravolta no trabalho do Herman, também foi a base de onde partiram cómicos como o Luis Filipe Borges ou os próprios Gatos. Falavámos de uma caracteristica que os distinguiu, o de não serem actores e de interpretarem os seus textos, o Miguel defendia que isso era uma mais valia, embora reconhecesse que para isso ser uma mais valia tinha de estar enquadrado numa produção rasca, em que um cenário minimalista e a fazer de conta que era um cenário, se impunha. Eu não muito entusiasmado com o valor acrescentado que isso podia trazer contei-lhe uma pequena história que tinha presenciado uns dias atrás na FNAC. Passava um DVD dos Gatos. Vejo um adolescente, a olhar aquilo, com cara de anteontem já a sentir-se estúpido de não conseguir achar piada aos gatos. A seguir junta-se um par de adolescentes. Os dois olham para o êcran. A rapariga ri-se num determinado gag. O seu par olha-a com um sorriso. O outro jovem mira-os, aos dois, a ver se também podia entrar. O riso dos outros dois já estava afinado. Riam-se nas entradas certas. Começavam a repetir pinhal e a rirem-se, eu diria, estupidamente. Foi nesta fase que o outro adolescente se sentiu suficientemente à vontade para entrar. Entrou. Juntaram-se mais duas ou três pessoas. No final a aclamação, eles já estavam de pé: os gajos são geniais. E eu gostava de pensar nisto mais a sério, para além dos Gatos ou do próprio RAP. Sou daquelas pessoas que acredito que o humor desempenha uma função social tremenda. Lembro-me de há vinte e tal anos, no fim das escadarias da Esbal, ter apresentado uma performance, Às vezes danados!, e que terminava desta forma ingénua e pueril: "que me interessa que tenha havido um Hitler ou um Estaline se em cada época eu tiver um Charlot para, através do riso, os ridicularizar". Era uma profissão de fé na arte e não se estranhe isso de um jovem de vinte anos que estava rodeado de jovens que ferviam na experiência artística. É claro que hoje já não assinaria uma frase daquelas mas guardo dela esta incondicional adesão ao humor. O humor como forma de respiração de uma vida, de uma vida outra. Ver nas coisas outras coisas nas mesmíssimas coisas. É quase que um treino. Há uns anos o Acert e a Barraca organizaram em Tondela uma homenagem ao Raul Solnado. Pegaram numa data de amigos e conhecidos e lá levaram uma camioneta cheia de gente para bater palmas ao grande cómico. A coisa foi bonita, com aquela amizade farta e militante e a organização arranjou mesmo um hotel no sopé da montanha para passarmos a noite. De manhã íamos a sair já depois de tomarmos o pequeno almoço e quando já íamos a transpôr a porta do hotel o Raul Solnado chama-nos com ar de puto:
- É pá, já viram o papa a mijar para o muro das lamentações?
E faz-nos voltar atrás claro. Olhamos a capa do DN e lá está de facto o Papa, em frente ao muro das lamentações. Só que a sua postura curvada, a sua mão saíndo do hábito em direcção ao muro dava a entender que o Papa estava de facto a urinar para o muro. E foi de tal forma forte essa imagem que nos olhámos como se, nos primeiros instantes, fosse isso que acontecia. É claro que aí já o Solnado tinha desmanchado a sua atitude e com ar de puto reguila imitado o Pessa, e esta, hem!, mas o que me ficou desta situação é o poder de sugestão que tem estre trabalho de desconstrução da realidade. Lembro-me que quando cheguei a Lisboa fui comprar o jornal e guardei durante muito tempo essa imagem. E surpreendia-me ainda com o poder da sugestão do cómico. Nunca mais consegui ver o Papa numa simples posição defronte do muro das lamentações.
Quando penso na situação de humor em Portugal ocorre-me muito essa imagem. E não é só os Gatos, insisto. Falta ao humor em Portugal este golpe de asa de quererem fazer da nossa vida uma outra vida. A proliferação do chamado stand-up comedy a um género asséptico em que plateias riem nos momentos certos é um sintoma disso. Com excepção do Pedro Tochas, e - esse porque é um actor muito humilde, trabalhador, expressivo, que faz uma magnífica gestão da sua carreira - a maior parte do trabalho deste género em Portugal é deprimente. Os chamados programas de humor como Batanetes, Malucos do Riso, eram sustentados por recolha de anedotários, de colecções de piadas, servidas a rol, a metro. Lembro-me de um dia estar com um amigo actor que me confessou que nessa semana tinha tido de fazer uma mesma anedota em dois programas de estações televisivas diferentes.
E os exemplos sucedem-se. É quase como se cada novo programa de humor fosse mais uma pedra na tese de que o humor em Portugal - excepção honrosa para o Contra-Informação - está moribundo. O Sempre em Pé, que sucedeu à Revolta dos Pastéis de Nata ( e que pelo menos foi uma tentativa honesta e trabalhadeira de fazer um programa de humor diferente e que em certa parte, conseguiu) é uma tristeza. Se um tipo tiver amigos que por lá passam tem de tomar anti-depressivos para não ficar com uma dor de alma só de pensar, o que é que eu lhes digo quando os encontrar na rua?, é que mesmo com a justificação que a vida está má, que um tipo se não aparece esquece, há buracos onde se a gente por lá se mete quase nunca de lá sai.
Há uma coisa engraçada que se passou com o fenómeno Gatos e com as piadas deles. Eu creio que grande parte do sucesso que eles tiveram se ficou a dever ao facto das suas piadas poderem ser repetidas por qualquer um. Como não eram actores, eram essencialmente autores, cada um de nós podia no meio das suas pequenas plateias arrancar umas gargalhadas valentes com as anedotas dos gatos sem correr o risco da plateia insensível o obrigar a confessar que, isto pelos Gatos é que tem piada. Ou seja, não dava trabalho e cada um de nós, cúmplice, se ria.
Isso faz-me lembrar os grandes cómicos de rua com os quais, nos Olivais, cresci. O pessoal juntava-se todos em volta do oráculo, um eleito, um mais versado na arte de contar as histórias. Não era para qualquer um. Era o tempo em que a malta partia o coco a rir. Na minha rua um dos melhores contadores de histórias que por lá passou foi o Bafatá. Anedotas, histórias, situações sem piada nenhuma, tudo o que passasse por ele adquiria graça. Depois havia os que repetiam as mesmas histórias mas a função narrativa era singular e de natureza excepcional. E o pessoal quase sempre jubilava o oráculo com a sentença, este gajo devia era mesmo ir para o teatro. Andei por várias ruas e em cada um delas encontrei o gajo que tinha mais piada do que todos os outros juntos. Que contava as anedotas ou que fazia da vida - tal como o Raul Solnado naquela situação que contei - uma anedota. Lembro-me do nosso riso. Era bonito, caramba.
O que me parece é que a forma como atribuimos a função do humor a estes subprodutos que para muitos de nós, criados noutro tipo de referências humorísticas, não têm piada nenhuma, tem a ver com a forma com que, neste momento da nossa vida social, nos conseguimos relacionar com o humor. E eu não me parece que estejamos num momento em que tenhamos grande disponibilidade para rir de nós próprios. Porque também perdemos o jogo de nos pormos em causa. Não se trata tanto de nos levarmos muito a sério. Levamos, claro que levamos, como bons (e maus) filhos de uma (pequena, média ou alta, que importa?!) burguesia somos fiéis aos nossos genes auto-contemplativos. Mas é mais do que isso. Não sei o que é, não percebo o que é, nem me vou agora pôr-me aqui a dizer coisas só para disfarçar a minha incapacidade de perceber o que se passa.