Há muito tempo o meu pai foi chamado para a “guerra”, pela terceira vez. Das outras duas vezes eu ainda não era nascido e ele ficara pela metrópole, mas desta feita convocavam-no para Angola. Nova Lisboa mais precisamente, uma bela cidade transformada em bastião militar no meio de África. Nenhum de nós percebia porque alguém queria tão insistentemente um capitão miliciano com um bigode bonacheirão e uma orla de seis filhos atrás. Quando em 1971 - um ano depois de ter partido - nos chamou para junto dele, percebemos finalmente que para além do fato verde e da boina que usava contrariada e desajeitadamente nada mais o ligava àquilo que lá longe se passava no mato. Fomos viver para uma cidade calma onde a guerra não entrava. Era um mundo diferente onde as águias pairavam rente à janela e em vez de galinhas se viam pacaças e macacos à beira da estrada e lá mais para dentro, diziam-nos, até leões. E haviam também uns gafanhotos gigantes com uns bizarros chifres esbranquiçados, quase do tamanho de uma mão adulta, que nós orgulhosamente guardávamos como troféus em frascos de vidro. Na escola pública onde então fiz a 3ª classe, a um quarteirão de distância, conheci as gentes de lá. Éramos apenas três europeus, talvez melhores alunos, não sei, sei que mais poupados às reguadas que tentávamos amenizar com mezinhas à base de rabo-de-cavalo e azeite que se conjuravam e aperfeiçoavam na nossa clandestinidade de vítimas. O mais velho da sala era quase homem, e dizia-se que teria colocado duas batatas nos hercúleos bíceps que todos os intervalos ostentava para grupos de admiradores embasbacados, no que sempre acreditei. O meu maior amigo era um africano com mais 3 anos que eu e que me ensinou a dar saltos mortais e me defendia sempre das emboscadas no recreio. Lembro-me que um dia saltei do telhado do refeitório e desde aí deixei de ser o “puto branco”. Com eles passei a demorar-me mais depois das aulas e foi assim que conheci a “outra parte” da cidade. Quase sempre pó, senzalas e uma enorme liberdade que eu não sabia explicar e que ia muito para além do “brincar na rua”. O ar era mole e húmido, e a terra parecia tocar o céu e espraiar-se indolente até ao infinito. Em frente do edifício onde morava havia uma igreja onde todos os domingos me confessava de andar à pancada com os meus irmãos e de lá saía sobriamente desculpado. Quase todos os adultos que conhecia da messe dos oficiais não me pareciam ter nada a ver com aquela guerra que se dizia travar-se lá mais para leste. Aí onde vivia haviam alguns miúdos brancos e mimados que estavam proibidos de sair das cercanias e que nos invejavam a liberdade que nos era dada. Deles, com eles, lembro-me vagamente e apenas das tardes que passávamos assoberbados de um rádio-amador com que nos maravilhávamos a escutar o mundo inteiro. Aos 8 anos, aquele parecia-me ser o sítio mais aprazível e de maior liberdade do mundo. Foi lá que me apercebi de como a terra era tão grande. Fiz lá a 3ª classe e depois voltei. Voltei como lá cheguei, sem guerra, ainda. Essas questões do mundo nunca me chegaram. Mas o mundo sim, a sua vastidão. A única coisa que verdadeiramente me marcou desse tempo foi ter de voltar a enfiar a minha vida (que se tinha tornado enorme) neste mundo pequeno e encafuado.
(Pois bolama, são coisas minhas de há muito tempo, mas acho que ainda consigo perceber essa alguma 'claustrofobia' que transportas quando te levas de novo de volta. E bem sei: a falta de longitude não tem de ser interpretada apenas num ponto de vista 'geográfico')