segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

mar e rocha que podiam ser dos nossos‏

As horas voavam e, como sempre, Marilu seguia em passo apressado para não perder o 21, essa era sua sina, chegar sempre às últimas e perder a chance de agarrar lugar sentada, amanhã haveria de ser diferente, jurava com a mesma força e certeza de tal não acontecer. Chegado o autocarro à paragem, lá se arrastou com a carneirada em passo de pinguim, entrou por onde e como pôde, mais não desejou que qualquer coisa a que se agarrar com uma das mãos, que a outra serviria para lhe facultar a leitura para viagens como aquela, assim, quase sempre assim, fazia Marilu o percurso Av.de Berlim-Rossio que a havia de levar ao escritório. Naquela manhã, embrenhada que estava em leitura de conto de amor, levou tempo a aperceber-se que o inicialmente leve toque em partes suas, por trás bem se vê, se repetia numa cadência que não deixava margem para dúvidas, num crescendo de quantidade, qualidade e pressão, a coisa era propositada, invulgar e bem feita. Refeita do choque da descoberta que lhe distraía a leitura e, pior que isso, a trazia numa polvorosa húmida, que mais que preocupá-la a fazia engasgar em seco, deixou a coisa arrastar-se até ao ponto em que mais não, tal foi após ter gozado uma doce e violenta descarga eléctrica que lhe percorreu as entranhas e ecoou num gigante gemido interior de que não tinha memória em si. Sem aviso, que a coisa não era pública nem de requerer tais atenções, espetou uma cotovelada fortíssima no parceiro de trás, juntando à falta de aviso no gesto, a cirúrgica aplicação na força e local, como aprendera num prospecto de ginásio de Krav Maga, e que tomara por certo e seguro ser de uma inutilidade a toda a prova. Puro engano.
Alberto, Rocha de apelido, seguia sossegado em sua viagem, assistido pelo fiel parceiro de sempre, um lindíssimo Golden Retriever, com artes e conhecimentos de geografias citadinas, com lealdades e solidariedades tais que dele faziam um cão guia de truz! Foi pois como um raio que recebeu aquela descarga de cotovelo, que por pouco não o prostou de borco, dando-lhe que fazer nos dez minutos seguintes, qual fosse a tarefa de tentar reencontrar espaço para conseguir respirar, não ver era uma coisa, não meter ar ao bucho outra totalmente diferente e que não ia lá com cães-guia. O cão, esperto como só os cães das histórias sabem ser, apercebeu-se de imediato que o dono carecia de um amparo extra e, ainda que contrariado, viu chegar a hora de terminar suas focinhadas carinhosas pelo entremeio daqueles jeans com aroma a pecado e algum tesão. Chegou-se ao dono, que de imediato deu sinal de trela que a coisa era de estar sossegado e por ali, pois que alguém mal lhe queria, já que pelo menos a carteira não o era.
Chegada a viagem ao Rossio, vendo o personagem de bengala e cão ainda um pouco combalido, Marilu esqueceu pressas e correrias e cedeu uma mãozinha de solidariedade, ajudando-o a desenvencilhar-se por entre a turba formigueira e mais rápido chegar ao ar livre que lhe parecera o homem necessitar. Acabaram por dividir atenções um pouco mais, num café tomado no quiosque ao lado da paragem dos táxis, e onde nenhum dos dois resolveu trazer à colação as estranhas incidências na viagem acabada, limitando o assunto ao frio que fazia e a perguntas e palpites acerca da vinda da chuva ou não. O Golden, semi cabisbaixo, questionava-se se porventura sobraria para ele, tal era a capacidade detectivesca do Rocha seu dono, e palratória da moça cheirada, que ali sorvia o café por entre uma conversa sem nexo. Chegaram as despedidas, de alivio para uns e tristeza para outros e partiram, cada um a seu caminho, que a vida custa a ganhar.
No dia seguinte, Marilu, acometida que fôra por uma insónia que a não deixara dormir e a que não era alheia uma investida cadenciada em partes suas a que vinha dando pouco ou uso nenhum, saiu cedo cedinho de casa, chegando pela primeira vez à paragem a horas tais que à chegada do autocarro estava ali perto da frentinha da fila mesmo, o que veio a ter o nunca visto resultado de conseguir lugar sentada. Ainda mal refeita da conquista, subia o veículo os primeiros metros da longa subida até ao shopping, à esquerda o cemitério ficava para trás, olhou ao lado e não sem surpresa e o seu quê de emoção reencontrou o cego da véspera, já ele se apercebera que ela chegara, o cão também, que nisto de olfactos a coisa piava fino e o perfume dela não era coisa de passar despercebido, outros cheiros mais escondidos também não, dono e cão em sintonia.
- Desculpe, nem me apresentei ontem ... Maria de Lurdes, ou Marilu, mas os amigos chamam-me Mar, como se mar houvesse por estas terras de olivais ...
- Que prazer, Alberto, ou Beto, mas os amigos chamam-me Rocha ... e rochas olhe que sim, que as há, por entre oliveiras e muros aqui do sitio
- Engraçado ... fica-lhe bem . E o cão, o seu cão, como se chama?
- É o meu guia ... chama-se Mexilhão, era para ser Brisa, mas não quis confusão com o rio, o tejo, se me faço entender!
A viagem decorreu em animada cavaqueira, o Rossio chegou em três penadas quem diria, desta vez não houve incidentes, para tristeza de um e uma, gáudio de outro. O cão, esperto como só os cães das histórias sabem ser, sentiu algum remorso e leal desconforto ao perceber-se com novo papel no dito popular, substituída foda por culpa no momento de Mar bater no Rocha, e tudo por farejados cheiros nela ... em sonhos desejados, à evidência negados e afinal atreitos a finais de falta de ar colectivo!

Bafatá