Sinto-me muitas vezes um privilegiado por viver numa cidade que tem, mesmo à mão de semear, um rio como o Tejo . Para mim um dia, mesmo o pior, reabilita-se com um passeio junto ao rio ou numa daquelas esplanadas que a cidade inventou para o admirar. O Adamastor, o Noobai, a Esplanada da Graça, as Docas, Belém, Terreiro do Paço, Jardins do Tabaco e das Descobertas, o terraço do Hotel do Bairro Alto, Cacilhas, são apenas alguns dos oráculos da minha devoção. Gosto também do passeio pela marginal até Cascais. Desde a adolescência, ainda no carro-família, com os meus irmãos, lembro-me da face ainda marcada pelo sal e o vento a bater, a refrescar-nos. É-me renovadamente estranha a imagem dos barcos a balouçarem na ondulação ténue. Parecem-me ilhas solitárias ali penduradas no território líquido. Imagino sempre, no instante em que este relance de paisagem se atravessa no olhar, que vou numa destas pequenas embarcações. Amo a noite sobre a água, o cheiro da maresia, o barulho das ondas. Não sei bem porquê. Nunca fui grande nadador, nunca velejei. Nem posso colocar na minha carta de navegação - por mais prazer que me tenham dado - as horas que gastei nas viagens diárias de cacilheiro que fazia quando morei do outro lado do rio,. Desde há uns anos que todas as casas onde moro têm, por mais pequeno que seja, um altar onde me entrego a esta sedução pelo Rio Tejo. O mais engraçado é que quase nunca dei pelo rio nos Olivais e também o tinha sempre na minha varanda, no lad0 esquerdo, ali para os lados do Ralis, no enfiamento da ponte Vasco da Gama. Nos Olivais vivi muito e durante bastante tempo. Não é dele no entanto este delírio pelo rio.