domingo, 20 de abril de 2008

Tardes em Monserrate


Há já alguns tempos que alguém falou dos passeios a Monserrate. Na altura disse que tinha algumas imagens de um dos muitos passeios que demos a Sintra. A máquina era muito má e só mesmo o desejo de reconstruir a memória oculta para lá dos pixels me leva a trazer estas fotos. Estaríamos em 82. Íamos no combóio até ao fim da linha e depois fazíamos aqueles três quilómetros a pé. Chegados lá abancávamos na relva enquanto se enrolavam charros, uns atrás dos outros. Cada vez era menor o tempo entre charros. Eu não fumava, era o careta de serviço, lá me disfarçava de Óbelix e desculpava-me dizendo que tinha caído na panela do haxixe quando era puto. As pessoas aceitavam-me bem nesta escusa. Não era o único. Havia um outro, que como eu tinha ressacado mal e que desde aí nunca mais se ganzara. Eu gostava de ver o grupo quando o haxixe começava a fazer efeito. Os risos incontrolados, os olhares etéreos, aquela vontade de se evadirem. Para mim eles eram o meu pequeno grupo de aventuras onde podia ser o observador que sempre fui. Via-lhes os romances, à séria, já tinhamos vinte anos abertos, abriamos o sexo como quem abre uma flor, experimentávamos ainda os limites do corpo, do uso. Lembro-me que naquele ano de 1982 eu estava cansado como se tivesse vindo de uma pequena guerra. E talvez tivesse vindo mesmo de uma batalha. Que começara no final de 1980. Quando corria, no fim antecipado das aulas nos Viveiros para apanhar o 21 e depois o metro até Palhavã, onde entrava no universo mágico daquela sala cor de rosa na Comuna. Até às cinco, seis da manhã em que, encostados às escadarias do Metro, eu, a Ana e o Pedro, esperávamos a abertura de portas para voltar para casa. Eu ía para a escola sem dormir. Estava de facto a passar por uma guerra, por uma viagem que me marcou para sempre, rodeado de gente, poetas, cantores, actrizes, intelectuais e políticos que estavam ali tão próximos daquele meu olhar embasbacado, provinciano. Foi assim que eu aterrei neste grupo do café do Tó. Eram tempos difíceis, ou pelo menos, na facilidade que tinham sido as nossas vidas anteriores, eram tempos em que não havia grande futuro. O futuro era estarmos ali - um pouco como na história da nêspera do Mário Henrique Leiria - à espera do que nos pudesse acontecer. Arranjávamos biscates, eu trabalhava na loja de fotocópias do meu primo ou nos Correios, havia mais como eu nos Correios, era o tempo dos contratos a prazo para provir falhas nos tempos de verão, era aliás o glorioso tempo dos contratos a prazo, dos salários em atraso. No fim dos contratos dos correios íamos seis meses para o desemprego. A ideia era tentarmos ganhar uns patacos para podermos gastar no dia-a-dia, ali, encostados ao muro, sentados nos cafés do Tó e do Cheira Mal . Ou para comprarmos uns discos. Para irmos à Aula Magna quando não conseguiamos entrar à borla. Foi lá que vi a Juliete Greco, o José Mário Branco. Talvez também o Leo Ferré. Ou o Fausto. Não sei. Sei que o tempo era interminável. Quer dizer, nunca mais acabava. Ficávamos ali horas a olhar uns para os outros, a dar pontapés no ar, a dizermos bojardas. Ou então naquela casa da Praceta Aleixo Corte Real que era a nossa verdadeira casa. Não foi muito tempo que isto durou mas tenho sempre a sensação de que foi demasiado tempo. Felizmente nesses tempos as idas a Monserrate, ou os acampamentos na passagem do ano no Guincho, eram pequenas aventuras onde por momentos eu sentia que aconteciamos.