terça-feira, 24 de março de 2009

Na frente ocidental nada de novo

"Eu continuo a acreditar nesse mundo impossível, sem ódio, sem rancor, sem ciúme, sem morte, sem capitalismo, sem diferenças sociais nem raciais, sem armas, onde o amor ao próximo é possível. "




De repente duas circunstâncias destrançaram-se e deram-me um pequeno espaço para vir à blogosfera. Penso em ir ao meu blogue. Mas depois algo me trouxe ao Olivesaria. Acho que foi, como à Maria Correia - que belo texto! - esta Primavera aos bocados. Bocado lua, estrela, cometa, bocado noite amena, azul tranquila, bocado vontade de fazer amor, de destapar a pele, de espreguiçar o corpo, bocado luz sobre a estátua do Pessoa ali na Brasileira, bocado cámones a descerem e a subirem a Rua Garret. Ou, para voltarmos novamente ao bairro, bocado manhã ensolarada no antigo café do tó, já este sábado, bocado desejo de voltar à escrita, à partilha, aqui.




Olho a imensa bondade que se despreende desta crença num mundo onde o amor ao próximo é possível e dou por mim a fazer contas àquilo em que (não) acredito e a perceber que a idade agudizou um problema que sempre esteve na minha relação com o mundo: a minha razão anda vezes demais desavinda com a minha emoção. E como os meus pensamentos não conseguem fazer as pazes com o mundo - é uma zanga que o tempo aprofunda - cresce dentro de mim um libertário, um anarquista intransigente, quase panfletário. Também, porque ao mesmo tempo sinto a necessidade - como se fosse uma sede, uma fome - de me pacificar interiormente, arranjei um estratagema, ou uma estratégia, talvez um truque: proibi a minha vida de (des) acreditar. De (des) esperar.




Não acredito mais. Esse é o tributo que a minha paixão, a minha necessidade de me apaixonar, de viver apaixonadamente, paga à minha razão. Mas o meu pensamento também tem contas a prestar à minha necessidade de me emocionar. Proibi-o, mais à minha linguagem, de expressar a minha descrença. E arranjei mais uma estratégia, um estratagema, sem dúvida, um truque: criei um lugar dentro da minha memória, e a minha memória é um pedaço do meu corpo, onde sonho com um "mundo sem ódio, sem rancor, sem ciúme, sem morte, sem capitalismo, sem diferenças sociais nem raciais, sem armas, onde o amor ao próximo é possível".
Há uma coisa que o tempo, a idade - essa maldita que tanto nos rouba de modo irremediável -nos devolve: o sonho, como acção de re-existência. Não apenas o sonho, o que resulta da acção de sonharmos mas o próprio sonhar enquanto acto, gesto, atitude. O sonhar enquanto tempo, a duração, o tempo que dura o tempo em que estamos de olhos virados para as nossas paisagens interiores. O sonho não é uma mera rima fácil do cançonetismo kitsch. É uma fabulosa actividade física, psíquica. Sonhamos sem nenhuma justificação. Apenas para alimentarmos os nossos tecidos moleculares, a nossa estrutura atómica. Para não sermos destruídos pela nossa incredulidade crescente.
Olhem a pessoa que sonha enquanto sonha: o mundo está em agitação permanente, sempre a vender-nos a sua urgência, a sua prepotência, parece impossível afastarmo-nos dele, libertarmo-nos do estado de vígilia, senão para aquele desligamento obrigatório, diário, a que a máquina nos obriga, o sono. No entanto esta pessoa suspende esta arrogância mundial e avança no pequeno teatro do mundo que é a sua vida e procura um lugar onde o seu corpo físico se possa desligar momentaneamente do que o cerca. Procura uma cadeira, um sofá, uma cama, uma pedra do passeio, um bocado de relva. Senta-se, ou deita-se ou recosta-se. Esta pessoa que sonha, que se entrega assim ao acto de sonhar não sabe que é uma pequena heroina. Está tão habituada a fazê-lo que nem se dá conta de que milhões e milhões de pessoas já não conseguem sonhar senão quando em estado inconsciente, no repouso de uma sesta, de um sono. É um breve momento. Fecha os olhos ligando-se ao enorme banco de imagens que, frame a frame, cabe numa vida. Depois, mais para a frente, há-de abrir os olhos e, sem se dar conta, já não é o mesmo homem ou a mesma mulher. Levanta-se, caminha por entre os prédios, por uma frente ocidental onde nada de novo acontece, mas já não é nem a mesma mulher nem o mesmo homem.
Também nós. Também nós somos o que sonhamos, as nossas imagens anteriores. O tempo que dedicamos a constituir, a partilhar imagens. Em pixels ou não. As palavras são imagens de um pensamento articulado. Aqui estamos nós em comum porque temos as mesmas imagens na cabeça: um grupo de adolescentes de calças surradas a sairem dos prédios, a colorirem as ruas, a darem vez e razão à relva verde, à sombra da tarde. Isso não foi ontem, nem antes, é hoje, é agora, no momento em que fecho os olhos e enalteço a minha molécula que saúda o verde, a primavera. Como espero o seja ainda depois e amanhã, quando este prazer de correr no parque se estender àquele que espera de mim um incentivo, um olhar, um exemplo. É por isso que volto, com ele pela mão, uma vez mais a esta frente ocidental onde nada de novo surge. E que me comovo quando sinto entre os dedos os seus dedos e dentro deles as imagens que circulam - desde a play station portátil até este Vale do Silêncio - livres entre nós.

quinta-feira, 12 de março de 2009

YOU CAN'T ALWAYS GET WHAT YOU WANT

De: Maria Correia
Hoje passei pelos Olivais. Nada de novo, na frente ocidental, com excepção da grande muralha de betão que me parece finalmente completamente construída, enorme, massa, volume, sem respiração e cortando a respiração do bairro. Sou actualmente uma mera visitante esporádica do bairro, sinto-o por vezes mais aqui pela olivesaria--as recordações são vivas--do que quando por lá passo. Ontem passei também pela Olivesaria, como passara há uns dias, há umas semanas; também nada de novo na frente ocidental. Apenas um silêncio com nomes, num espaço que já vi mais movimentado. Hoje, ao passar pelos Olivais, e como é Primavera, lembrei-me como, na minha adolescência e na minha juventude, ( em anos, não em espírito) aqueles relvados e pracetas, aquelas escadas e escadinhas, nesta altura do ano, se encontravam cheios de gente, muitos jovens, sentados na relva, caminhando pelo bairro em direcção à casa de um amigo qualquer, calças de ganga velhinhas porque eram velhas e não por serem compradas rasgadas de propósito nas lojas da moda dos centros comerciais, camisas de xadrez, peças de roupa que na altura ainda não se chamavam bem t-shirts, belos jovens e belas jovens de cabelos compridos e contestação ao canto da boca, cigarros de erva sonhadores nas mãos que, na altura, tocavam o céu azul, um céu onde o amor eram pássaros azuis num campo verde no alto da madrugada. Ocorreu-me automaticamente a frase precisa e incisiva do Mick Jagger, YOU CAN'T ALWAYS GET WHAT YOU WANT, cantada há trinta anos e continuada a cantar-se por todo o mundo ainda hoje, mas penso que mais baixo, desde que o Lawrence Kasdan a imprimiu para sempre como tema de fundo no filme carismático sobre a perda da inocência da era hippie e o começo da era yuppie, mais egoísta e virada para valores exactamente contrários aos da geração anterior. YOU CAN'T ALWAYS GET WHAT YOU WANT. O Alex suicidou-se e Kasdan dá a entender subliminarmente que o terá feito devido à «insatisfaction», a mesma coisa que o Jagger dizia no «I can't get no...», ou seja, uma mal aise, uma insatisfação criada no fundo do ser devido ao confronto com a realidade do mundo do capitalismo duro e cru, em que já não havia lugar para a tal inocência que acreditava ser possível viver-se de um outro modo. YOU CAN'T ALWAYS GET WHAT YOU WANT. É bem verdade que alguns dos valores dessa geração da INOCÊNCIA, no sentido mais puro do Homem natural rousseauniano, foram coados para a sociedade actual, a preocupação com a natureza, (mas depois o desprezo pelo protocolo de Kioto por parte das grandes potências) a ecologia ( mas depois constroem-se muralhas de betão), o misticismo (mas depois surgem-nos para aí bruxos capitalistas a torto e a direito), as organizações de solidariedade social, as ONG's (mas continuamos a ver metade do mundo a morrer de fome), o respeito e o amor pelo nosso semelhante (mas depois surgem guerras e guantánamos e gangs de bairro, cada vez mais violentos)...YOU CAN'T ALWAYS GET WHAT YOU WANT...NO, YOU CAN'T ALWAYS GET WHAT YOU WANT...No fundo, a Idade da Inocência ( outro grande filme, mas de Scorsese), perdeu-se. Perdeu-se? Eu continuo a acreditar nesse mundo impossível, sem ódio, sem rancor, sem ciúme, sem morte, sem capitalismo, sem diferenças sociais nem raciais, sem armas, onde o amor ao próximo é possível. Continuo a acreditar contra tudo e contra todos os que dizem que não, que blabla, que isso é uma utopia, que não existe, que é coisa de miúdos barbudos de uma geração perdida, que se drogava e andava de terra em terra, que escreveu livros e poesia e temas musicais eternos, que vivia em comunidades e que depois chegou à conclusão que isso não era possível, que o Homem é um ser egoísta por natureza, guerreiro por natureza, que mata por prazer, enfim, tudo o que diz para aí e se tenta inculcar no espirito das criancinhas enquanto as abafam com computadores e telemóveis e bonecos robô que ladram como os cães verdadeiros, ou fingem que ladram. YOU CAN'T ALWAYS GET WHAT YOU WANT. O Alex suicidou-se pois não foi capaz de aguentar a pressão do malaise d'être e todos nós conhecemos, ou quase todos, um Alex. Mas a morte de Alex não foi em vão nem impune. Despoletou todo um antigo espírito solidário entre aquele grupo de yupies que também sentia o mesmo mal-estar, afinal, do género: «Deus morreu, Marx também e eu próprio não me sinto lá muito bem. YOU CAN'T ALWAYS GET WHAT YOU WANT.
Hoje, ao passar pelos Olivais lembrei-me disso tudo. A canção também dizia que, se procurarmos bem , «you will get what you need».

Será o «what you need» tão importante na vida como o WHAT YOU WANT?
Maria Correia