Já o projecto Olivais Vivo tinha algum tempo de desenvolvimento, foi sugerido que fossêmos a uma zona problemática. Até aí tinhamos andado por zonas mais ou menos amenas, Vale do Silêncio, Largo das Mamas, Largo do Ferrador, Largo na Rua Cidade da Beira, desta vez sugeriram-nos uma intervenção na Quinta das Laranjeiras, numa zona dominada por dealers e consumidores. Reunimos o quartel-general das expressões e do desporto, íriamos todos em conjunto. Começámos por uma pequena animação - as velhotas diriam, uma pequena palhaçada - e depois fomos tentando pegar os jovens para o trabalho connosco. A certa altura percebo que não posso continuar ali. Das varandas há olhares hostis, a medirem-nos, a ver se temos medo, se amedrontam estes doutores da mula russa. O chão está cheio de seringas, os dealers estão com ar desconfiado, tudo aquilo me deprime. Tenho de fugir e o mais rapidamente possível. Como sempre, faço-me de tonto, olho para uma pequena abertura entre os prédios, vejo uma espécie de descampado, pergunto para um grupo de miúdos que estavam ali (entre o medo da chacota que vinha das janelas e das varandas para o pátio e a fuga à realidade que aqueles tipos esquisitos pareciam poder porporcionar) :
- Aquilo vai dar aonde?
Os miúdos ficam orgulhosos. Aquilo é o bairro deles, o ponto de fuga para a zona oriental, para os contentores, para o brincar vadio à beira rio.
- E vai-se por ali? - insisto, com o meu ar de deslumbrado.
- É já ali embaixo.
Afasto-me, na direcção do caminho, sei que vêm atrás de mim. Faço sinal a uma das animadoras da equipa de rua, ela percebe que eu saio com eles. Já estamos fora do pátio, dos olhares trocistas, das vidas rodadas num vira-destinos que quase nunca cai para o lado do sol.
- E pode-se ir a pé?
Passam a ser eles a explicar. Eu já sinto o cheiro da terra, da folhagem, o rio ao fundo reorganiza-me, a partir de agora, há medida que os passos nos afastam da zona mais tensa do bairro também mando eu:
- E se escolhessemos cada um o nosso personagem?
- Um quê?
- Quando eu era puto tinha um grupo de aventuras e todos tinhamos um nome de guerra...
- Claro, eu sou o...
E começaram aí a escolher o nome. Ainda não tinhamos chegado aos contentores, já tinhamos uma canção e um grito comum.
- Podemos fazer uma bandeira, João?
Claro que podemos, podemos fazer tudo. E fazemos quase tudo. Eu troco brincadeiras antigas, atirar pedras ao rio, escondermo-nos, com outras, que eles me trazem, subir aos contentores, dizer palavrões, gritar. E ao fim de uma hora e tanto voltamos. Eles inventam cada vez mais promenores sobre o grupo. Eu sinto-me feliz, muito feliz. Não fiz nenhuma das actividades de expressão dramática que deveria ter feito, mas tinha conquistado o grupo:
- Voltas, João?
- Só volto se vocês me mostrarem um sitio giro.
E marcámos logo ali um novo encontro. Ainda não sabíamos mas tinha nascido ali a Malta das Ideias.