A propósito do Urié (Arié, Sr Arié ou Bigó) , deixo uma fala de um texto dramático que evocava este personagem (e também o Ai-Ai). A peça na sua totalidade nunca foi levada à cena mas uma parte, "Urié e Rouxinol, uma história de amor", foi representada, por mim e pela Rosário Figueiral, com encenação de Jorge António (e participação ao vivo do saxofonista João Cabrita) no salão da Igreja Nova dos Olivais. Deixo-o com um desafio aos ases do pincel que por aqui andam: uma ilustração com um dos nossos mais célebres personagens, não vinha mesmo a calhar? Ou sobre o Ai-Ai?
3ª Cena
Urié parte o seu “carro” *
(
Urié entra com a árvore. Acelera. Deixa o motor ir abaixo. Empurra a árvore)
Urié A-ora é q' é!(
Empurrou novamente a árvore. Dá balanço. Movimentou a perna como se tivesse a dar ao pedal de uma motoreta. O motor começou a trabalhar. Rouxinol riu-se. Ele interrompeu o barulho e voltou-se para ela) Esta-ermo! Por ausa de i eixei o vum-vum i abacho! Nã osso alar e con-uzir ao memo empo! Hã!Hã! Ensas o ê?! O mo-mo -or é a-ui (
bateu com a palma da mão na garganta). É a-ui! A-ora empu- a co-igo! (
Rouxinol empurrou-a a ele e ele empurrou o ramo. O motor começou a trabalhar) Vum-Vum! A-da! ‘Alta cá a entro! (
Rouxinol sentou-se no ramo. Deram dois ou três passos e o ramo partiu-se) E-a! E-a! E-a! T-agou-se! Tá t-agado! Abes uanto ustou u-a áquina estas! Sto é u-a á-vo-e! Se ou a-ancar ais á-vo-es ó ale ou p-eso! Ou p-eso! O uarda á m' a-isou!(
Rouxinol afastou-se, ele agarrou no ramo partido) O eu ca-o! (
virou-se para Rouxinol) Ão abe o é um ca-o! Isica sê oisa gande! (
Atirou o pau fora) Ma-ia da g-andeza! Ma-ia da g-andeza! Ma-ia de oisa g-ande ! (
Deu de caras com um caixote de lixo, dos verdes, com rodinhas) Ó á! O á! (
Correu para ele. Agarra na tampa. Fecha-a. Abre-a. Fecha-a) Tem ca-ô ! Tem ca-ô e o-ta ba-agens! Ganda ca-o! (
Dançou desajeitadamente. Rouxinol que estava escondida apareceu e começou aos berros de alegria. Deitou o caixote do lixo no chão) G-anda omba! G-anda omba! A-ece memo um ca-o a sé-io! (
Mirou-o, alargando os braços como se estivesse a tirar-lhe as medidas. Foi buscar um papel de jornal. Tirou uns pedaços e colou-os com cuspo na parte da frente do caixote simulando faróis) Té dá pá á-dá á oite! (
Olhou para Rouxinol) Éres ár uma ólta! U-a g-anda ólta? (
Rouxinol concorda e vai a entrar no carro) E-ra!E-ra! Nã ode er a-im! Em he er omo o inema! (
Esticou-lhe o braço e com o maior dos cavalheirismos ela entrou para dentro. Depois fechou a tampa.) E-u-ra-te! (
Rouxinol não conseguiu estar lá dentro com o cheirete do caixote do lixo. Abre a tampa) À êm! É o eiro de er ovo! Ab-e a ca-ota!
(
Deambulam pelo espaço. A luz dirige-se à casa na árvore, ao piso superior)
Agora é que é!(Empurrou novamente a árvore. Dá balanço. Movimentou a perna como se tivesse a dar ao pedal de uma motoreta. O motor começou a trabalhar. Rouxinol riu-se. Ele interrompeu o barulho e voltou-se para ela) Estafermo! Por tua causa deixei brum-brum ir abaixo! Não posso falar e conduzir ao memo tempo! Hã! Hã! Pensas o quê?! O motor é aqui ( bateu com a palma da mão na garganta). É aqui! Agora empurra comigo! (Rouxinol empurrou-a a ele e ele empurrou o ramo. O motor começou a trabalhar) Brum-Brum! Anda! Salta cá para dentro! (Rouxinol sentou-se no ramo. Deram dois ou três passos e o ramo partiu-se) Ena! Ena! Ena! Estragou-se! Está estragado! Sabes quanto custou uma máquina destas! Isto é uma árvore! Se vou arrancar mais árvores ao Vale vou preso! Vou preso! O guarda já me avisou!(Rouxinol afastou-se, ele agarrou no ramo partido) O meu carro! (virou-se para Rouxinol) Não sabe o que é um carro! Precisa ser coisa grande! (Atirou o pau fora) Mania da grandeza! Mania da grandeza! Mania de coisa grande ! (Deu de caras com um caixote de lixo, dos verdes, com rodinhas) Olá! Olá! (Correu para ele. Agarra na tampa. Fecha-a. Abre-a. Fecha-a) Tem capô ! Tem capô e porta bagagens! Grande carro! (Dançou desajeitadamente. Rouxinol que estava escondida apareceu e começou aos berros de alegria. Deitou o caixote do lixo no chão) Grande bomba! Grande bomba! Parece mesmo um carro a sério! (Mirou-o, alargando os braços como se estivesse a tirar-lhe as medidas. Foi buscar um papel de jornal. Tirou uns pedaços e colou-os com cuspo na parte da frente do caixote (que está deitado, portanto a parte inferior) simulando faróis) Até dá para andar à noite! (Olhou para Rouxinol) Queres dar uma volta! Uma grande volta? (Rouxinol disse que sim e vai a entrar no carro) Entra! Entra! Não pode ser assim! Tem que ser como no cinema!(Esticou-lhe o braço e com o maior dos cavalheirismos ela entrou para dentro. Depois fechou a tampa.) Segura-te! ( Rouxinol não conseguiu estar lá dentro com o cheirete do caixote do lixo. Abre a tampa) Está bem! É o cheiro de ser novo! Abre a capota!
* Excerto da peça "É para os putos que não querem comer a sopa".