O muro onde abancamos nos intervalos das brincadeiras e que ladeia a entrada do prédio é, do lado oposto, muito alto. Mais alto que o meu pai. Para se olhar para ele lá debaixo, por onde se sai da cave, tem de se esticar o pescoço todo para trás.
Acho que foi o Miguel quem teve a ideia. Como é ele o mais velho está sempre a ter estas ideias que eu acho servirem para nos ir mostrando quem é o chefe do grupo. Nem hesitou. Num instantinho foi parar à relva, rebolando-se para amortecer a queda. No resto da tarde, um por um, desafiados, todos foram saltando o muro. O Paulo trincou o lábio e foi a correr para casa, em choro. Foi o herói da tarde. Olho para as gotas de sangue que ficaram na calçada e desejo que não seja nada de grave. Ele é o meu melhor amigo.
Já está quase na hora do lanche, e já saltaram quase todos. Só falto eu. Mas a altura assusta-me. Ao princípio ainda tinha deste ou daquele palavras de incitamento, mas agora começo já a sentir a troça deles. Já sei o que vai acontecer a seguir - que sou o bebé do grupo, que assim nem sequer devia poder fazer parte do bando, que sou sempre quem os deixa ficar mal. É quase verdade isso. Mas é porque sou o mais novo, muito mais novo. Tenho quase menos 2 anos que o que vem a seguir, o Tiago, que já vai já fazer 9 anos.
Estou inseguro, e magoado. Apetecia-me agora não estar ali. O meu irmão, o único que me podia ajudar, pôs-se do lado deles, também ele rindo de mim. Sinto-me muito sozinho. E com uma enorme raiva por não o ver tomar o meu partido. Bastava-lhe que contasse como ontem eu tinha feito frente à malta do Lote C, e talvez eles reconsiderassem. Mas ele nada disse, juntou-se a eles. Estou furioso com ele. Isso nota-se e serve para ele cochichar qualquer coisa, lá no meio do grupo. Sei que é sobre mim – oiço os risos - mas não sei o que ele disse. Estou afastado uns dois metros deles, uma distância agora intransponível, por isso, o que eles falam, torna-se ininteligível para mim. Sinto-me mesmo muito sozinho.
Chegou a hora do lanche. É a minha última oportunidade, mas mais uma vez não consigo. Aquilo é muito alto, é alto demais para mim. Começamos a destroçar. Eu retorno para casa sob um insinuante coro de troça. Estou envergonhado e sinto-me frágil. Mordo o lábio para não chorar, que isso ainda agravará mais a chacota que já sinto sobre mim. Agora o alívio de chegar a casa. A Srª Bia pergunta-me porque choro enquanto me dá o lanche. Mas eu estou chateado, não respondo. Não respondo a ninguém. E está-me a custar imenso estar ali, a tomar o lanche com o meu irmão. É dele que esperava auxílio. Eu ainda sou muito pequeno, e ele já é grande. Devia estar do meu lado.
...
A minha mãe está enfurecida. Nem repara a força com que carrega no algodão. Ardem-me imenso os joelhos, e assim ela não está a ajudar nada, mas nem me atrevo a queixar. Pergunta-me insistentemente sobre o que me passou pela cabeça para ir lá abaixo já ao cair da noite e atirar-me daquele muro altíssimo. E que se me tivesse aleijado a sério? Assim, sozinho, quem haveria de dar comigo? Eu ainda tento explicar que era uma aposta, nada mais me ocorre para explicar a importância que aquilo tinha cá dentro de mim. Mas ela não percebe as minhas palavras, não percebe como aquilo foi importante para mim, nem tem orgulho em mim. E ver-me assim tão insuflado ainda a encoleriza mais. Dobra-me o castigo. Sorrio indisfarçavelmente - àquele castigo sinto-o como o reconhecimento da minha façanha. Está furiosa. E eu não lhe consigo explicar que gosto muito dela, que me sabe muito bem tê-la ali a tratar de mim. Que nestas alturas ainda gosto mais dela.
O meu irmão está lá ao fundo, a ver televisão. Mas sei que olha pelo canto do olho. Também agora ele finge que não é nada com ele. Que nada sabe do assunto. Sei que ele agora me admira um pouco, mas também sei que nunca mo dirá. Eu não vou dizer aos nossos amigos que saltei, estou chateado com eles, mas queria imenso que ele lhes contasse isso. Mas sei que ele não o vai dizer. Agora que já me sinto melhor (e não precisei dele para nada), já só me falta acertar contas com ele, ele vai ver. E não lhe vou falar pelos menos durante 2 dias.
Acho que foi o Miguel quem teve a ideia. Como é ele o mais velho está sempre a ter estas ideias que eu acho servirem para nos ir mostrando quem é o chefe do grupo. Nem hesitou. Num instantinho foi parar à relva, rebolando-se para amortecer a queda. No resto da tarde, um por um, desafiados, todos foram saltando o muro. O Paulo trincou o lábio e foi a correr para casa, em choro. Foi o herói da tarde. Olho para as gotas de sangue que ficaram na calçada e desejo que não seja nada de grave. Ele é o meu melhor amigo.
Já está quase na hora do lanche, e já saltaram quase todos. Só falto eu. Mas a altura assusta-me. Ao princípio ainda tinha deste ou daquele palavras de incitamento, mas agora começo já a sentir a troça deles. Já sei o que vai acontecer a seguir - que sou o bebé do grupo, que assim nem sequer devia poder fazer parte do bando, que sou sempre quem os deixa ficar mal. É quase verdade isso. Mas é porque sou o mais novo, muito mais novo. Tenho quase menos 2 anos que o que vem a seguir, o Tiago, que já vai já fazer 9 anos.
Estou inseguro, e magoado. Apetecia-me agora não estar ali. O meu irmão, o único que me podia ajudar, pôs-se do lado deles, também ele rindo de mim. Sinto-me muito sozinho. E com uma enorme raiva por não o ver tomar o meu partido. Bastava-lhe que contasse como ontem eu tinha feito frente à malta do Lote C, e talvez eles reconsiderassem. Mas ele nada disse, juntou-se a eles. Estou furioso com ele. Isso nota-se e serve para ele cochichar qualquer coisa, lá no meio do grupo. Sei que é sobre mim – oiço os risos - mas não sei o que ele disse. Estou afastado uns dois metros deles, uma distância agora intransponível, por isso, o que eles falam, torna-se ininteligível para mim. Sinto-me mesmo muito sozinho.
Chegou a hora do lanche. É a minha última oportunidade, mas mais uma vez não consigo. Aquilo é muito alto, é alto demais para mim. Começamos a destroçar. Eu retorno para casa sob um insinuante coro de troça. Estou envergonhado e sinto-me frágil. Mordo o lábio para não chorar, que isso ainda agravará mais a chacota que já sinto sobre mim. Agora o alívio de chegar a casa. A Srª Bia pergunta-me porque choro enquanto me dá o lanche. Mas eu estou chateado, não respondo. Não respondo a ninguém. E está-me a custar imenso estar ali, a tomar o lanche com o meu irmão. É dele que esperava auxílio. Eu ainda sou muito pequeno, e ele já é grande. Devia estar do meu lado.
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A minha mãe está enfurecida. Nem repara a força com que carrega no algodão. Ardem-me imenso os joelhos, e assim ela não está a ajudar nada, mas nem me atrevo a queixar. Pergunta-me insistentemente sobre o que me passou pela cabeça para ir lá abaixo já ao cair da noite e atirar-me daquele muro altíssimo. E que se me tivesse aleijado a sério? Assim, sozinho, quem haveria de dar comigo? Eu ainda tento explicar que era uma aposta, nada mais me ocorre para explicar a importância que aquilo tinha cá dentro de mim. Mas ela não percebe as minhas palavras, não percebe como aquilo foi importante para mim, nem tem orgulho em mim. E ver-me assim tão insuflado ainda a encoleriza mais. Dobra-me o castigo. Sorrio indisfarçavelmente - àquele castigo sinto-o como o reconhecimento da minha façanha. Está furiosa. E eu não lhe consigo explicar que gosto muito dela, que me sabe muito bem tê-la ali a tratar de mim. Que nestas alturas ainda gosto mais dela.
O meu irmão está lá ao fundo, a ver televisão. Mas sei que olha pelo canto do olho. Também agora ele finge que não é nada com ele. Que nada sabe do assunto. Sei que ele agora me admira um pouco, mas também sei que nunca mo dirá. Eu não vou dizer aos nossos amigos que saltei, estou chateado com eles, mas queria imenso que ele lhes contasse isso. Mas sei que ele não o vai dizer. Agora que já me sinto melhor (e não precisei dele para nada), já só me falta acertar contas com ele, ele vai ver. E não lhe vou falar pelos menos durante 2 dias.
(rascunho do Fula escrito nos tempos em que connosco partilhava a casa das máquinas... agora, de perdido lá nos confins do blogue vem a lume publicado por Benguela)
24 comentários:
ainda só li o autor e já estou a deitar foguetes.
Oh Benguela, se é publicado pelo Benguela como pode estar ali em baixo "publicado por fulacunda" ? tu vê-me lá isso pá. Até porque não dá jeito nenhum comentar um post (não) publicado por nós. Emenda lá a coisa que eu a publicar algo só enquetes.
já tinha lido em Rascunho, (previlégio de blogger). creio até que já houve uma tentativa anterior de lhe tirar a rolha.
nós não queremos que voltes!!!
pois não, pessoal?
Curioso é o facto do lourenço marques em tempos já aqui ter publicado uma foto com o muro:
http://olivamos.blogspot.com/2007/09/j-agora-e-enquanto-no-comea-o-gp-do.html
segunda foto; o muro corria pela esquerda da entrada, ao meio do prédio; na foto estará à direita do autocarro.
Ora digam lá que não é alto!
Não consigo. Aquilo estava lá com o teu login in, oh cacete! e não consigo mudar aquilo.
de maneira que o post ao dizer: PUBLICADA POR FULACUNDA EM 28.11.07, É MENTIRA. O Fulacunda NÃO VOLTOU.
FUI EU QUE PUBLIQUEI.
(a data original do rascunho era para aí de Agosto 07)
Lindo!Desculpem lá, mas este Post tem de ficar bem definido a quem pertence a história afinal a importância que tinha para o autor o salto, não pode ficar em mãos alheias...Esclareçam lá isso.
benguela: estive a informar-me e por razões técnicas já não é possível o fula sair. o html não permite. durante pelo menos 3 meses, vai ter colocar posts à razão de 1 por semana.
fula: nós acreditamos (porque somos teus amigos) escusavas de borrar pintura com esta tentativa vã de dar credibilidade à tua história. factualmente é assim: ninguém vê muro nenhum (será o lambril do passeio?)e ainda por cima isto são fotos de st. antónio dos cavaleiros no séc. passado.
vai mas é escrever mais histórias que o html está à espera.
Não está em mãos alheias, oh anónimo (meta lá um nick), o texto foi ESCRITO PELO FULA e publicado por mim. Irrrrra!
já tens lá a foto Fula. era alto, sim, senhor. e tão alto, tão alto que crescia até ao céu como nas histórias do pé de feijão. bonita história esta, companheiro. segue o Xai: aproveita a validade do html e deixa-te de m. . És o rei do in-comment mas podes dar mais à causa.
:)
Fantástica história Fula, deliciosa mesmo. Tão queriiido, foste um valente, sim senhor!! E eles para aqui a discutirem html e o carapau...
(ou é da minha vista ou é dos colhões do Baptista... mas eu também não vejo muro nenhum, oh Belo! e foi por isso que não meti a foto)
Tadinho do Fula não conheço mas concordo que merece beijinhos e aplausos para o Benguela! nick ,agora tramaste-me...Posso pensar mais um bocadinho?
Também não vejo muro, mas a historia está lá e é cheia de sentimento, foi no muro da outra esquina qualquer... Até pode ter sido um outro tipo de muro pro Fula expremiu-se assim, foi como lhe saíu a memória,adiante...!Passaram muitos anos sabem lá qual é o muro agora...eheheheheeh Beijinhos sem nick por enquanto não me explulses já, ainda quero ler estas 'crónicas dos Olivais'.
Também não vejo muro nenhum, mas acreditamos piamente que ele estava lá, fula...
Sejas bem vinda! a expulsão não é daqui intenção.
(... e um nome fica sempre bem)
bravo benguela (descula lá, fulacunda, mas não se deve deixar rascunhos destes ao deus-dará)!
e tu, fula, vê lá se regressas duma vez.
O muro está do lado direito do autocarro, por detrás do candeeiro. Façam zoom.
Big story.
Bolas, até dá gosto ficar calada!
Tenho a certeza de que vou analisar de outra maneira os desvarios dos meus filhos!
Pode ser que um dia eles consigam articular sentimentos e expô-los assim...
Boa Fula e quantos muros destes tiveram a nossa infância? Não muitos, mas os que foram lembramo-nos bem. E fizeste-me lembrar o meu fantástico irmão mais velho e isso deixa-me sempre mais feliz.
o muro está lá e foi ali que vivi até justamente aos 7 anos. depois fiz a terceira classe em Nova Lisboa (hoje Huambo), quando o meu pai foi chamado pela terceira vez para a tropa (chegou a capitão miliciano !!), com 6 filhos atrás. Só quando voltei é que fui morar para os chalés da caixa, perdão, para as moradias. Estes nomes Timor, apesar de poderem não ser ficcionados, não serão certamente aqueles que depois nos foram comuns.
Boa Fula, ainda não consegui ver o muro, mas não dúvido que lá esteja, espera lá...moraste nas moradias quais? Seremos da mesma equipa? Nas fotos és qual o da camisa branca ou o do lado?
Nós também só fomos morar para aquelas banda por essa altura (ainda morámos um ano na Rua Cidade da Beira). Não foi pelos nomes que me fizeste lembrar o meu irmão, mas pela aventura e a forma como a contaste. Já estou a sorrir outra vez.
fula & muro: que bom ver-vos !!!!!
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