Há coisas tramadas na memória de um amnésico. Há, como disse o Beira há muito tempo a propósito de um amigo, coisas de que nos lembramos e outras que não conseguimos esquecer. Nestes tempos em que da escola tanto se fala, do que fomos, do que queríamos ser, da forma como hoje nos retratamos, aquele velhos do Bolama atirou-me para um fim de tarde nos Viveiros que nunca irei esquecer. O dia em que o Fernando Namora foi à escola falar da sua obra.
É um momento menos simpático, menos lustroso, do qual me envergonhei profundamente pelos anos que se seguiram. Eu não era aquilo que se pode dizer, um beto, ou um facho ou um anticomunista primário. Era um sonhador, como sempre fui. Vinha cá abaixo ao mundo para receber a semanada e ir comprar tabaco ao meu pai e pouco mais. Mas não era um beto a sério. Ao meu irmão lá conseguia de quando em vez vestir as calças de fazenda, os sapatos italianos, os pullovers de marca, e lá ía todo pimpolho fazer de beto para os intervalos das tardes dos Viveiros. E era um bocado do tipo de ir atrás dos outros. Numa dessas tardes um dos meus amigos de ocasião convenceu-me a ir fazer estrilho para um debate que os comunas tinham organizado. Era uma apresentação de um grande escritor, Fernando Namora. Só me lembro, ou melhor, só nunca mais me consegui esquecer, de ter passado uns largos minutos a rir, a chamar macaco, comuna e careca ao Fernando Namora. O episódio passou, eu enterrei-o para o meu canto escuro da memória. Também passaram todos os modismos de que me fui fazendo. Anos mais tarde, estava a ler "O Jornal" e dou de caras com uma crónica de Fernando Namora, intitulada, Os Velhos. Li-a e reli-a sem conseguir deixar de ver aquele homem sentado a uma mesa de sala de aula dos Viveiros a ouvir dois ou três putos estúpidos a chamarem-lhe os piores nomes possíveis. E admirei-lhe a sua coragem, a sua humildade. A partir dessa altura li-lhe a obra toda. E escrevi-lhe umas cinco ou seis cartas, a dizer-lhe quem era e o que lhe tinha feito e a pedir-lhe desculpa. Rasguei-as todas. Porque compreendi que eu não era ninguém, que para o grande escritor aquele episódio não tinha deixado nenhuma marca e que só a mim, só a mim me marcara.
5 comentários:
Bonito João Belo, gosto da tua franqueza simples. Também tenho um desses episódios que se nos ficam atravessados e, gosto de acreditar, os remorsos não são perdidos e nos fazem - a prazo - mais tolerantes. O meu foi num concerto do Sérgio Godinho no Campo Pequeno e a quantidade de disparates que eu e mais umas quantas oliveiras soltámos da primeria fila ainda hoje me ressoa nos ouvidos ou talvez seja no estômago. E, claro, ele lá teve a dignidade de nos ignorar.
A propósito de escritores, fiquei também com pena de nunca ter arranjado coragem para ir bater a casa do Miguel Torga em Coimbra. Li muito os seus Diários nos anos da universidade e fui umas quantas vezes a Coimbra em actividades associativas e não só. Fiz grandes conjecturas sobre como me iria receber e o que lhe iria dizer, mas nunca fui e ele morreu e ainda hoje tenho pena. Estas "penas" que nós temos de não concretizar planos relativamente absurdos - deixamos os nossos alvos na categoria de estátuas e não nos desiludimos. Tem também a ver com o teu comentário daquela fase de maria vai com a outras ou a prevalência do grupo - um grande tema olivalense. Mas não dura sempre e também teve os seu lado bom. Vá lá que doutras vezes tive mais coragem ou iniciativa.
bolas, eu era mesmo atinadinha lá pela província.
pois é, lá pela província, quando passava um autor ou um músico, como o Sérgio Godinho, o Joaquim Manuel Magalhães, o Vitorino d'Almeida ou o Fausto, quando passavam de ano a ano, mesmo quando eram o Ballet Gulbenkian, só nos ocorria aproveitar o mais possível, colher um autógrafo, fazer a festa no final, quantas festas com os músicos ou os bailarinos no botequim ou no clube, uma vez houve que fomos às tantas da manhã cantar para os claustros do convento onde se encontra a Câmara Municipal, gozar a acústica magnífica das arcarias de granito... bolas, éramos mesmo ávidos por tudo o que perturbasse a pasmaceira do dia-a-dia!
dizes bem, Timor: a prevalência no grupo, um grande tema olivalense.
Mais uma vez, um belo texto de João Belo, punjente, na sua humildade...nos anos sessenta, creio,alguns psicólogos fizeram a seguinte experiência: um grupo de pessoas, digamos umas sete, sabia o que se ia passar na sala; todos sabiam, menos uma dessas pessoas, o senhor X. Apareceu um professor que desenhou num quadro várias linhas verticais, todas do mesmo tamanho. Perguntou então ao grupo de sete pessoas qual era a linha maior (eram todas iguais) todos começaram a dizer que a linha maior era a segunda...o senhor x (que não sabia da combinação entre o grupo) afirmava a pés juntos que eram todas iguais, que não havia nenhuma maior...e tinha razão; mas os outros insistiam, que sim, que havia uma linha maior e que era a segunda( estavam todos combinados para dizer isso); passado um pouco, o sr x acabou por dizer «ah, sim, de facto, têm razão, a linha 2 é maior do que as outras», aceitando, algo atónito, o que os outros lhe diziam...isto é mecãnica de grupo, que pode ser altamente perigosa...foi o que aconteceu a muitos de nós, embora, cá por mim, tenha sido sempre muito do contra...quando toda a gente dizia que sim, eu ia pelo não...diziam que tinha espírito de contradição...mas fiz uma outra dessas, claro, somos seres humanos e errare humanum est...
Salut!
Bonito.
Gostei desse teu acto de partilha de um remorso que ainda te atordoa.
tenho tantas dessas histórias, e o inverso também. de coisas que fizemos sem reflectir e de que nos arrependemos de ter feito...
Ir no grupo é sempre o mais fácil, e a maior parte das vezes o mais divertido. Mas saltar do grupo na altura certa... também dá um certo gozo, e já o fiz várias vezes, e orgulho-me disso!
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