terça-feira, 15 de abril de 2008

Yako

Yako quer dizer “vem cá” num dialecto guineense que desconheço. Era o nome do um pastor alemão, nascido e ‘baptizado’ por lá e chegado aquela família já adulto. Enorme, vivia vítima desse gigantismo, essa deformidade de força que o tornava incontrolável e que, não obstante os seus uivos lamentosos, o mantinha eterno prisioneiro das cercanias da casa. Nenhum dos 6 miúdos que por lá viviam - a não ser que por castigo - se arriscava a passear tal fera. E nisso não se receava o esforço ou mesmo a impotência em o dominar, mas sim as sequelas sobre tudo o que mexesse na vida pública e das quais se faria cúmplice quem se aventurasse a passeá-lo.

Um dia, porém, faz muito tempo, um dos miúdos arriscou prender-lhe uma trela, abrir o portão e de súbito, aos tropeções, fez-se desaparecido no horizonte. Desde então, algo inexplicavelmente, teimava em fazer-se largado todos os dias a reboque da fera para depois voltar quase desfalecido, por vezes mais de uma hora depois. Malgrado o desgaste em roupa e solas comentava-se naquele lar o sentimento generoso que esse seu gesto de compaixão, guiado por uma férrea obstinação, revelava. Era tal o reconhecimento familiar que com naturalidade se foi vendo dispensado das lides da mesa e da louça na máquina e até, confesse-se, alvo de algum amolecimento nos rigores da disciplina que, em bom haver, deveria dividir com os seus tantos irmãos. Mas a verdade é que vendo-o partir assim todos os dias, tenso e de faces geladas do pânico por um destino desconhecido, ninguém se aventurava a argumentar favores ou a trocar compromissos com ele.

Dia após dia o Yako foi assim conhecendo o mundo e foram tantos os dias em que assim seguiram os dois, que nessa rotina acabou amansando. O miúdo foi gastando cada vez menos solas e o seu amor pelo animal foi sendo também cada vez menos valorizado. Quando a fúria do bicho por fim sossegou e passou da condição de tractor a conduzido, a condição humana do jovem começou a destacar-se sobre a mera natureza animal do canídeo. Os dias passaram e nesses passeios cozinhou-se até algum companheirismo, aliás, aprofundado desde o momento em que os dois passaram a concordar mais democraticamente nos desenhos deambulantes com que os seus trajectos riscavam o bairro inteiro.

Chegou então o dia em que o miúdo ganhou a certeza de que seria capaz de treinar a fera para, mais do que a fazer mansa, fazer da sua mansidão parecer a antiga fúria indomada. E a diferença entre o inverno em que começara por ser rebocado por um animal impetuoso e descontrolado até à primavera em que agora o via amansado residia não no ar feroz, antes genuíno e agora dissimulado, mas mais na possibilidade de agora ser ele a traçar caminhos e a definir destinos. E nisso residia toda a diferença. Uma diferença tão fundamental que se alguma vez pensasse que jamais a conseguiria alcançar nunca o infeliz animal teria conhecido mais do que o lado de dentro dos muros do seu jardim.

Desde esse dia era vê-lo então correr ladeiro abaixo, estimulando o companheiro para ostentar as suas garras e tensar a trela com esforço ensaiado, e assim se acercarem os dois da da varanda dela, bravos, e de seguida mergulharem por entre o túnel que esburacava a fileira de prédios para logo depois aparecerem do outro lado, sempre em passo valente, ele olhando de soslaio uma acidental aparição da miúda loura. E foram tantas as vezes que um dia ela lhe apareceu, e apareceu-lhe tantas vezes depois que, apesar da sua quase crónica timidez, acabou por a conhecer. Finalmente.

Há coisas que não importa explicar, muito menos naquela idade, se de paixões falarmos. O certo é que aquela afinidade que tanto lhe custara fazer acontecer sob uma chama platónica acabou por não se transformar em amor e, sem que desse por isso, nasceu ‘apenas’ uma sólida amizade. Naturalmente, terá deixado de precisar de continuar a passear o Yako por baixo da varanda ou junto ao túnel. Depois o Yako envelheceu e também ele deixou de ter motivos para o rebocar enfurecido pelos trilhos dos Olivais. Mais tempo passou, o Yako acabou por morrer e outras duas gerações de cães ainda lhe sucederam, perdurando a sua graça.

Ao último levei-o eu para uma piedosa morte, entravado de velhice, quase trinta anos depois do seu antecessor partilhar das minhas esquivas e tímidas investidas ao redor de uma miúda loura, provavelmente a minha primeira paixão. Ele morreu portanto há muito tempo e eu voltei naturalmente a haver-me com novas e antigas paixões. Ela entretanto casou-se. Comigo.

22 comentários:

Beira disse...

histórias de amansar a fera que todos temos dentro de nós

Beira disse...

Quantos andaram a passear o cão (ou não) sem conseguirem atingir o fim a que se propunham?

joão belo disse...

Li já duas vezes e sei, não me vou ficar por aqui. Em cada leitura há um ambiente que se completa. Um lugar que percebo. Aquele túnel. Imagino até o caminho que iria do ladeiro a essa correnteza de prédios. Talvez estivesse alguém a jogar no maracangalha. Lembro-me também da rapariga loura que em tempos mais recuados foi minha vizinha e comoveu-me a vossa história. Gosto de saber que fui/sou contemporâneo de gestos/paixões/amores assim. Mas voltemos à tua história. Tal como na do burro dá para perceber uma coisa: tu tens um dom. Podia ficar por aqui mas como tenho a esperança que possa ser mal interpretado não resisto a provocar um restinho de marialvismo que ainda se atreva a andar por este nosso mundo de tipos sensíveis ou pelo menos, abertos à sensibilidade: és um homem muito bonito!

benguela disse...

lembro numa tarde de verão, não sei se o Yako um ou o dois, virou tudo quanto era mesas e cadeiras da esplanada do mete-nojo para se ir "pegar" com um canito que teve o azar de se lhe atravessar no caminho precisamente do lado oposto ao dele... com o N. a voar na ponta da trela...

Fulacunda disse...

o 'fim' beira? acho que não sou já só eu que estou metido num molho de bróculos.

oh Belo pá, tu envergonhas-me com tanta beijoquice pá. e quanto ao dom, e falas do burro, será que te referes a alguma efabulação para a qual eu seja mais dotado?

Bengas, só podia ser o primeiro! mas não me lembro do N. ter alguma paixão para esses lados.

benguela disse...

Não sei se tinha alguma paixão ou não, mas que estava ali sentado à mesa comigo e com mais não sei quem e a fera presa pela trela ao pulso do N, deitada e calma a dormitar... até cheirar um cão a 10 metros e arrancar num repente levando tudo à frente e o N. atrás...

benguela disse...

JB, pá... tás a abichanar!!!!!!

(Tá bem pronto, o Fula é o gajo mais bonito do blogue... "Morte aos feios")

Fulacunda disse...

bengas, confirmo que não era o Yako, mas sim Yako III. entre eles separava-os a distância que nos separa a mim e ao N. em anos. ou seja, eu estava para o pastor alemão como o N. estava para o serra da estrela. e não compares, eram os dois grandes, mas o meu era muito mais feroz e eu estava apaixonado. nem sei como podes confundir as situações.

Belo, parece que os marialvas já estão a pegar na tua provocação. e entretanto eu é que passo por gajo bonito ... 'tá bem 'tá!

benguela disse...

Não tou a comparar nada oh "gaijo mais bonito do blogue"... apenas escrevi o vi...

benguela disse...

*... o que vi.

cláudia santos silva disse...

grande, grande post, fulacunda!

e um pastor alemão é sempre um pastor alemão... um cão extraordinariamente inteligente. fizeste-me lembrar um que passou lá por casa, insubstituível.

xai xai disse...

Boa Fula!

Isto é capaz de ser um pouco mais que um post... será já literatura? Belíssima descrição de ti próprio...

Anónimo disse...

Fula....um post full

Anónimo disse...

com que então bonito? tá bem ...

anónimo irónico

Rua Cidade de Inhambane disse...

Pois...também tivemos vários pastores, acho que foi a unica raça a entrar lá em casa.
Está bonita a história

Anónimo disse...

Com o devido respeito...o café do Tó, ao domingo, está cheio de pastores. Mas daqueles que andam de mala

maria correia disse...

Lindo texto, cheio de ternura...lembrou-me todos os meus cães, até o que tenho actualmente, meio labrador meio serra d'aires e que parece um trator a puxar-nos...lembrou-me os cães que tive nos Olivais e essas paixões antigas! Obrigada pela beleza e pureza do seu texto, Fulacunda!

Fulacunda disse...

(surpreso, até ligeiramente aborrecido, interrogo-me porque insistem em associar este texto a cães quebrando-lhe o romantismo com que tão corajosamente (assim penso) o vesti. mas pronto ...)

obrigado pelas v. simpáticas palavras

Fulacunda disse...

mas concordo, os pastores alemães tb são para mim os melhores cães, embora nem sempre muito equilibrados.

maria correia disse...

De nada...no fundo, quem mais ressalta no texto é o cão,Yako...só no fim se percebe que havia uma menina loura e que casou com ela e que o Yako o terá ajudado a conquistá-la...a história é linda, uma vez mais...

Anónimo disse...

Há mais yakos na vida

See also Yako (text) for the work by Hidemitsu Tanaka.
Yako is a town in northern Burkina Faso, once capital of a small state. It lies 109 kilometres (68 mi) north-west of Ouagadougou. Yako is known for its large mosque, and as the burial place of Thomas Sankara. This town was visted by The Amazing Race in season 12.

Coordinates: 12°58′N, 2°16′W
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Retrieved from "http://en.wikipedia.org/wiki/Yako"

Anónimo disse...

www.yako.com