terça-feira, 14 de outubro de 2008

filosofia de ponta e mola
















Foi num sábado.
Ainda me estava a habituar a essa nova vida que era andar numa escola bem longe de casa e que me obrigava a andar todos os dias de autocarro durante hora e meia.
Quando chegava aos Olivais o coração apertava pois tinha de percorrer aqueles 300 metros, desde a paragem do 31, na cidade de Lourenço Marques, até à escola.
Será que conseguia chegar lá sem que ninguém me viesse acossar?
Tenho que admitir que nesses quase dois anos devo ter sido perturbado umas duas ou três vezes.
Mas a angústia era diária.
Foi num sábado, num dos primeiros sábados em que tive aulas, que ao sair da escola e ao dirigir-me para a paragem do autocarro encontrei no chão um canivete. O canivete da imagem. O canivete que me passou a acompanhar todos os dias enquanto fazia aqueles 300 metros. O canivete que apertava na mão, no fundo do bolso. O canivete que me iria salvar de quem tentasse perturbar o meu percurso do autocarro para a escola e da escola para o autocarro. O canivete que ainda hoje tenho e que me serve para abrir cartas e cortar folhas. O canivete que me deu a força para todos os dias percorrer aqueles longos e intermináveis 300 metros em segurança.

11 comentários:

JPN disse...

g'anda texto!

Beira disse...

:-)
É assustador ter 10 anos e chegar a um território desconhecido cheio de "índios".
Só se pensa em sobreviver.

Beira disse...

... e dentro da sala de aula não era mais seguro.

Tinha o Tapia como colega a dar-me lições de desenho. :-)

cláudia santos silva disse...

estratégias de sobrevivência :)

(uns anos mais tarde, subia o elevador do prédio onve vivia quase sozinha de x-ato na mão...:))

Anónimo disse...

ora bolas! então foste tu que encontraste o meu canivete?

Chaimite

Beira disse...

ha ha ha, como se eu acreditasse nisso.

xai xai disse...

Beira: Deves estar a falar dos Olivais em Coimbra.
Nos meus Olivais, não havia meliantes nem perigo de qualquer espécie.
A miscigenação social preconizada pelos arquitectos do planeamento fundador, funcionou na perfeição. Os "pintas" ficaram "pintas" e os "queques" tornaram-se "pintas". Como vês, muito eficaz...

Alguém disse?:

"Bolsos...! Bolsos...!"

Anónimo disse...

Pois não... havia só o pessoal dos 'blocos&cambodja' cheios de 'cortesias'...DV

Beira disse...

xai xai,
acho que foi mais assim:
alguns pintas queriam ser queques (mas nunca lá conseguiram chegar) e alguns queques acabaram por se tornar pintas.
O habitual nivelamento por baixo.

Fulacunda disse...

Ai Beira, é a primeira vez que vejo uma definição de queques assim tão "por cima". lá está, às tantas, ainda que sendo um desses, tornei-me um pouco pintas, o que confesso, sendo resultado de um processo de miscenização, não me desagrada de todo. admito que me falte ainda alguma humildade, mas ainda assim gosto dessa coisa da ubiquidade.

(essa insegurança de ponta-e-mola fazia parte do mesmo universo que nos permitiu crescer na rua)

Beira disse...

Para bom entendedor...

Nem nós éramos completamente queques nem eles inevitavelmente pintas.

Lembro-me do Chica, depois de anos a roubar-nos, resolver um dia ser "queque" (menino copinho de leite como ele dizia) passando a vestir-se de outra maneira. Claro que não basta o aspecto exterior para pertencer a um grupo. No fundo tínhamos vivências completamente diferentes. Até podia haver alguns pontos de contacto mas na realidade pertencíamos a mundos diferentes.

Quando falo de nivelamento por baixo refiro-me, por exemplo, a certos queques que a dada altura faziam umas festas para depois irem aos bolsos dos casacos dos que pagavam para entrar.
Será que repetiam o que lhes tinha acontecido anos antes?

A mistura acaba por acontecer por uma questão de sobrevivência.

Não é assim por todo o lado?


Quantos desses pintarocos ficaram teus amigos, mas amigos mesmo?
Até os podes encontrar na rua "Então tudo bem? Que é feito?" mas a conversa fica por aí.