"O Sr. Guarda já terminou? Muito bem! O tribunal sentencia o réu em pena de prisão, remissível em coima no valor de 15.500$00."
Esta sentença, ouvia-a eu da boca de um meritíssimo juiz no Palácio de Justiça de Lisboa no dia 14 de Junho de 1984.
Tudo começou a meio da manhã dessa quinta-feira quando saí de casa na minha Vespa amarela (fiel companhia que ainda hoje mantenho), para uma recolha de agriões em casa de fornecedor amigo e que por mero acaso não estava em casa. No caminho de retorno encontrei, um Novo Redondo bom e velho parceiro de muitas horas olivalenses e sesimbrenses.
“Bute aí, levo-te a casa” – convidei eu.
Junto à paragem do 21 próximo da igreja, a tal que o Fula incluiu em roteiro turístico proposto a uma “Intrusa” que por aqui passou, o percurso foi interrompido por uma arreliadora sirene que se declarou, atraída pela ausência de capacete do amigo Novo Redondo.
Acontece que por má fortuna minha, não foi a única ausência que captou a atenção do Xô Guarda que nos interpelou. Interessou-se igualmente pelo facto de eu estar a conduzir uma mota de 125 c.c. sem estar para tal habilitado, isto é: “… não tem carta de condução???”
Ouvi então a primeira sentença do dia: “Todos para a esquadra… e já!”
A firmeza autoritária de um fardado, só encontra paralelo na cobardia da sua versão civil, testemunhei eu na minha passagem pela instituição militar.
Chegados ao posto, fomos intimados a aguardar, nos característicos bancos de “sumápau” que decoram as esquadras. Nesta altura já se tinha atenuado o receio que revistassem a Vespa e me fosse pedida justificação para a existência de uma balança na “mala” da viatura. Em boa verdade, tudo é possível na cabeça de um polícia, incluindo não entender que é perfeitamente normal andar a passear pelos Olivais com uma balança, “debaixo do braço”.
Enquanto isso, o “nosso” polícia ia entrando e saindo da esquadra sem demonstrar grande pressa em iniciar a tramitação processual. De tal modo, que me convenci da intenção do agente em nos “pregar uma grande seca”, e em seguida mandar-nos em paz para o afago do lar, para onde ele iria igualmente quando terminasse o seu turno a meio da tarde.
Aqui chegados, convém lembrar que o tal dia 14 de Junho de 1984, não era, futebolisticamente falando, um dia qualquer. Nesse dia, a selecção nacional jogava com a Alemanha Federal (ou Ocidental como também era conhecida), o primeiro jogo da fase final do Campeonato da Europa, campeonato esse onde nunca tínhamos participado e que apenas encontrava importância análoga no Campeonato do Mundo em 1966(!). Certamente que estaria nesse acontecimento a explicação para o facto do polícia não pretender avançar com situações que poderiam muito bem desaguar em trabalho extraordinário.
Tudo se encaminhava para um fim feliz como no mais feérico dos contos, quando o Novo Redondo desta estória resolveu na melhor tradição olivalense, questionar o cumprimento das regras de boa conduta policial afixadas em quadro na parede do “estabelecimento”.
“O polícia apresenta-se sempre bem ataviado”
Sonora risada e comentário pouco abonatório.
“O polícia dirige-se educadamente aos cidadãos” sonora risada e comentário pouco abonatório.
E foram-se sucedendo as sonoras risadas e os comentários pouco abonatórios.
De tal modo que o sub-chefe de serviço, furioso e agastado com as observações, aproveitou uma ausência do polícia responsável pela detenção, e comunicou com o Tribunal de Polícia na Av. Marquês da Fronteira informando que se iria apresentar para julgamento um “meliante” que conduzia sem carta de condução.
E assim mesmo sucedeu.
O Novo Redondo foi mandado em paz para casa e após séria discussão entre o sub-chefe e o polícia da detenção lá foi este, contrariado e mais aborrecido que um deputado em dia de plenário na A.R. acompanhar-me ao julgamento no Palácio de Justiça de Lisboa.
No percurso, afinámos a estratégia para que tudo se desenrolasse de forma célere e limpa, pelo menos para o meu cadastro.
Arribei ao Palácio acreditando que o depoimento favorável do representante da autoridade, aliado a duas ou três lágrimas de crocodilo, me fariam passar incólume na sentença judicial.
AZAR o meu…
O meritíssimo de serviço, partilhava do nosso gosto pelo futebol e tanto assim era que já tinha recolhido a casa deixando o contacto telefónico para a eventualidade de algum “fora-da-lei” aparecer mas certamente convicto que tal não iria suceder.
AZAR o dele… e o meu!
Obviamente que quando o telefone tocou e foi informado de que havia “trabalho”, a minha condenação ficou garantida. E com toda a razão, acrescento eu. Não se interrompe impunemente a pacatez caseira de um juiz de serviço ao Tribunal de Polícia no Palácio de Justiça.
O julgamento foi rápido e no melhor estilo antes de ser já o era, fazendo lembrar Guantanamo.
Cumprimos todos a nossa missão:
Eu ofereci comoventes, intensas e sentidas gotas lacrimejares que réptil algum seria capaz de igualar;
O Xô Guarda enalteceu todas as minhas qualidades humanas, fina educação, trato irrepreensível e todos os encómios que a inspiração proveniente da vontade de ir assistir ao jogo rapidamente, lhe fornecia;
O Sr. Dr. Juiz, foi ligeiro e assertivo:
"O Sr. Guarda já terminou? Muito bem! O tribunal sentencia o réu em pena de prisão, remissível em coima no valor de 15.500$00."
P.S (1). Esta estória teve um final tântrico. Apenas terminou 13 meses depois quando paguei a última prestação da coima. Tinha terminado a tropa e estando impedido de voltar a estudar por ter atingido o limite parental de 3 anos escolares chumbados, encontrava-me na situação de desempregado sem capacidade financeira para pagar a multa.
A solução mais natural foi solicitar um empréstimo aos meus progenitores. Para minha grande surpresa resolveram dar-me uma lição.
“Estás sem dinheiro? Não tens rendimentos? Explica isso ao juiz e pede para pagares em suaves prestações” E assim foi, pedido apresentado, deferimento conseguido e após a liquidação da primeira prestação de 3.500$00, dirigi-me invariavelmente, no início dos doze meses seguintes à C.G.D. do Palácio da Justiça com as respectivas guias preenchidas, pagar os 1.000$00 acordados.
Não sei bem porquê, tornei-me averso a multas e foram muitas poucas as que tive até hoje.
P.S. (2) Portugal empatou 0-0 com a Alemanha Federal. 5 anos depois deixou de ser Federal porque alguém se encostou a um muro que por lá havia, derrubou-o e ficou vazio um mastro na sede da ONU.
xai-xai
Esta sentença, ouvia-a eu da boca de um meritíssimo juiz no Palácio de Justiça de Lisboa no dia 14 de Junho de 1984.
Tudo começou a meio da manhã dessa quinta-feira quando saí de casa na minha Vespa amarela (fiel companhia que ainda hoje mantenho), para uma recolha de agriões em casa de fornecedor amigo e que por mero acaso não estava em casa. No caminho de retorno encontrei, um Novo Redondo bom e velho parceiro de muitas horas olivalenses e sesimbrenses.
“Bute aí, levo-te a casa” – convidei eu.
Junto à paragem do 21 próximo da igreja, a tal que o Fula incluiu em roteiro turístico proposto a uma “Intrusa” que por aqui passou, o percurso foi interrompido por uma arreliadora sirene que se declarou, atraída pela ausência de capacete do amigo Novo Redondo.
Acontece que por má fortuna minha, não foi a única ausência que captou a atenção do Xô Guarda que nos interpelou. Interessou-se igualmente pelo facto de eu estar a conduzir uma mota de 125 c.c. sem estar para tal habilitado, isto é: “… não tem carta de condução???”
Ouvi então a primeira sentença do dia: “Todos para a esquadra… e já!”
A firmeza autoritária de um fardado, só encontra paralelo na cobardia da sua versão civil, testemunhei eu na minha passagem pela instituição militar.
Chegados ao posto, fomos intimados a aguardar, nos característicos bancos de “sumápau” que decoram as esquadras. Nesta altura já se tinha atenuado o receio que revistassem a Vespa e me fosse pedida justificação para a existência de uma balança na “mala” da viatura. Em boa verdade, tudo é possível na cabeça de um polícia, incluindo não entender que é perfeitamente normal andar a passear pelos Olivais com uma balança, “debaixo do braço”.
Enquanto isso, o “nosso” polícia ia entrando e saindo da esquadra sem demonstrar grande pressa em iniciar a tramitação processual. De tal modo, que me convenci da intenção do agente em nos “pregar uma grande seca”, e em seguida mandar-nos em paz para o afago do lar, para onde ele iria igualmente quando terminasse o seu turno a meio da tarde.
Aqui chegados, convém lembrar que o tal dia 14 de Junho de 1984, não era, futebolisticamente falando, um dia qualquer. Nesse dia, a selecção nacional jogava com a Alemanha Federal (ou Ocidental como também era conhecida), o primeiro jogo da fase final do Campeonato da Europa, campeonato esse onde nunca tínhamos participado e que apenas encontrava importância análoga no Campeonato do Mundo em 1966(!). Certamente que estaria nesse acontecimento a explicação para o facto do polícia não pretender avançar com situações que poderiam muito bem desaguar em trabalho extraordinário.
Tudo se encaminhava para um fim feliz como no mais feérico dos contos, quando o Novo Redondo desta estória resolveu na melhor tradição olivalense, questionar o cumprimento das regras de boa conduta policial afixadas em quadro na parede do “estabelecimento”.
“O polícia apresenta-se sempre bem ataviado”
Sonora risada e comentário pouco abonatório.
“O polícia dirige-se educadamente aos cidadãos” sonora risada e comentário pouco abonatório.
E foram-se sucedendo as sonoras risadas e os comentários pouco abonatórios.
De tal modo que o sub-chefe de serviço, furioso e agastado com as observações, aproveitou uma ausência do polícia responsável pela detenção, e comunicou com o Tribunal de Polícia na Av. Marquês da Fronteira informando que se iria apresentar para julgamento um “meliante” que conduzia sem carta de condução.
E assim mesmo sucedeu.
O Novo Redondo foi mandado em paz para casa e após séria discussão entre o sub-chefe e o polícia da detenção lá foi este, contrariado e mais aborrecido que um deputado em dia de plenário na A.R. acompanhar-me ao julgamento no Palácio de Justiça de Lisboa.
No percurso, afinámos a estratégia para que tudo se desenrolasse de forma célere e limpa, pelo menos para o meu cadastro.
Arribei ao Palácio acreditando que o depoimento favorável do representante da autoridade, aliado a duas ou três lágrimas de crocodilo, me fariam passar incólume na sentença judicial.
AZAR o meu…
O meritíssimo de serviço, partilhava do nosso gosto pelo futebol e tanto assim era que já tinha recolhido a casa deixando o contacto telefónico para a eventualidade de algum “fora-da-lei” aparecer mas certamente convicto que tal não iria suceder.
AZAR o dele… e o meu!
Obviamente que quando o telefone tocou e foi informado de que havia “trabalho”, a minha condenação ficou garantida. E com toda a razão, acrescento eu. Não se interrompe impunemente a pacatez caseira de um juiz de serviço ao Tribunal de Polícia no Palácio de Justiça.
O julgamento foi rápido e no melhor estilo antes de ser já o era, fazendo lembrar Guantanamo.
Cumprimos todos a nossa missão:
Eu ofereci comoventes, intensas e sentidas gotas lacrimejares que réptil algum seria capaz de igualar;
O Xô Guarda enalteceu todas as minhas qualidades humanas, fina educação, trato irrepreensível e todos os encómios que a inspiração proveniente da vontade de ir assistir ao jogo rapidamente, lhe fornecia;
O Sr. Dr. Juiz, foi ligeiro e assertivo:
"O Sr. Guarda já terminou? Muito bem! O tribunal sentencia o réu em pena de prisão, remissível em coima no valor de 15.500$00."
P.S (1). Esta estória teve um final tântrico. Apenas terminou 13 meses depois quando paguei a última prestação da coima. Tinha terminado a tropa e estando impedido de voltar a estudar por ter atingido o limite parental de 3 anos escolares chumbados, encontrava-me na situação de desempregado sem capacidade financeira para pagar a multa.
A solução mais natural foi solicitar um empréstimo aos meus progenitores. Para minha grande surpresa resolveram dar-me uma lição.
“Estás sem dinheiro? Não tens rendimentos? Explica isso ao juiz e pede para pagares em suaves prestações” E assim foi, pedido apresentado, deferimento conseguido e após a liquidação da primeira prestação de 3.500$00, dirigi-me invariavelmente, no início dos doze meses seguintes à C.G.D. do Palácio da Justiça com as respectivas guias preenchidas, pagar os 1.000$00 acordados.
Não sei bem porquê, tornei-me averso a multas e foram muitas poucas as que tive até hoje.
P.S. (2) Portugal empatou 0-0 com a Alemanha Federal. 5 anos depois deixou de ser Federal porque alguém se encostou a um muro que por lá havia, derrubou-o e ficou vazio um mastro na sede da ONU.
xai-xai
8 comentários:
eheheheheh! que história! podias ter pedido uns trocos emprestados!
e diz-me lá, achas que se eu conduzir um veículo de 4 rodas a multa também é assim tão pequena...acho que dá para arriscar...ao fim de 8 multas tenho a carta paga....ou ao contrário....
:)
ora bem, ainda cá faltava uma cena com a bófia ...
... e só se permitiria ser contada por ti Xai!
Ganda texto!
Mas um grande texto não deveria continuar no Olivesaria 2?
Ou resolveram que aquele espaço não tem utilidade?
E não teria sido mais rápido de resolver com a pena de prisão em vez da multa em prestações??
Olivesaria 2? O que é isso? um clone? uma dispensa? :)
Não compliques Beira ...
"dispenso" erros de palmatória: acima leia-se "despensa"
deve ter sido dos oregãos da estória
rasurado em 12 dez 2008, pelas 15:54
Já conhecia a história mas realmente quando bem escrita é outra coisa.
Rio
Venho por este meio (ao estilo judicial) desejar um Feliz Natal e um óptimo 2009
where you come from!
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