terça-feira, 14 de agosto de 2007

o Tiago, o pastel de nata e a filha da puta* da vidraça do 8º andar

* pode-se dizer filha da puta neste blog não se pode?


Ontem, enquanto tentava disfarçar o terror de engolir mais um intragável bolinho sob o olhar atento e enternecido da minha avó e preparava já os meus óbvios e abismados elogios, lembrei-me dele, do T, e daquela inesquecível cena de antanho, numa festa de anos, num 8º andar lá do bairro (para coordenadas mais precisas e a quem importe, a casa dos pais do Hipólito).

As festas de aniversário naquela altura eram usufruídas como oferendas de fartos lanches e pouco mais. Serviam essencialmente para guarnecermos a barriga e forrarmos os bolsos com reservas que transportávamos depois tão rápido quanto possível para a rua, onde, aí sim, se desenrolava toda a acção relevante. Claro que essa voragem arrasadora com que nos apetrechávamos, nunca permitia grandes hesitações sobre o que nos vinha à mão, e depois à boca, e por vezes, daí, vinham agruras.

Resultava assim uma ou outra vítima mais desprevenida ver-se surpreendida com um pedaço menos tragável do festim. Desta feita, fora ao T, moço expedito, de pressa gingona, a quem coubera a má sorte de inaugurar os pastéis de nata, já que os quais, aparentemente, nem para os nossos pouco exigentes palatos teriam proveito. E já lamuriando-se de tal azar, atrapalhava-se no inventar a melhor forma de se aliviar do estorvo. Angustiado, rodava a cabeça de um para o outro lado em demanda de esconderijos, e depois, em passo matreiro, cirandava pelos sítios menos conspícuos da sala com o propósito de se poder desfazer de forma desapercebida do intragável pastel, esse acidente gustativo que inesperadamente o impedia de prosseguir no repasto.

Entretanto o horroroso bolo - quase por inteiro ainda, a menos de uma surpreendida dentada - escorria-se na sua mão. Tentou largá-lo primeiro num canto de uma mesa baixa, mas logo lhe saíram à atenção um “oh menino que não se faz isso à comida”. Depois num outro flagrante, e logo pela mãe do aniversariante, repreensiva, a olhar para o montinho de smarties com que o tentara esconder ao lado das limonadas. Afinal, aquela operação de descarte, tão vezeira e pacífica de se resolver normalmente, fazia-se agora um incomodativo e frustrado contratempo. Nada lhe estava a sair bem, e o borrachoso pastel de nata, tão rápido quanto se aliviava da mão que o segurava, assim voltava, de cada vez mais esbodegado e pegajoso, de cada vez mais incomodativo e envergonhado.

Por cada tentativa que arriscava para se folgar de tal contratempo, logo um adulto lhe saía a caminho. E por isso, da vez seguinte, mais olhos o policiavam, e gradativamente mais árdua se tornava essa sua tarefa. Ora, posto isto, até o desembaraçado T teve de capitular, já receoso que tantos flagrantes pudessem vir a constituir-se em mais provas da sua grosseria, mais tarde, quiçá até junto da sua progenitura. Assim, e vendo-se alvo desta apertada vigília, depois de mais duas ou três trajectórias cruzadas pela sala com que ainda supôs iludi-los, acabou por se acercar de novo perto de nós, que entretanto nos agrupáramos junto do enorme envidraçado da sala. E, aparentemente resignado, lá se foi acomodando à roda que ali fazíamos, escolhendo o lado do vidro para, encostado, se deixar indolentemente ser visado pelas nossas observações e risos trocistas. Vencido, cerrava nas mãos que agora se cruzavam nas suas costas o dano de tão infeliz tarde de festa, e por ali se deixava ficar, cabisbaixo, deglutindo estoicamente a chacota que cada vez se tornava mais ruidosa, mas mantendo negar-se a fazer o mesmo com o estuporado pastel de nata.

Sustinha-se assim este hilariante ambiente quando subitamente todo este alvoroço se vê interrompido por um enorme estrondo. Um estrondo forte. Um esborrachado shmaaacck primeiro, que depois se acrescentou por uns instantes em vibrações mais roucas, e que provinha distintamente do local onde nos encontrávamos, junto à janela. Saltam alguns de nós para o lado, assustados, e quedam-se todos os restantes confrades. Todo o festejo, por um momento, se interrompe. De todos os lados provêm olhares perplexos, que incidem sobre nós.

Ainda hoje me rio desbragadamente ao recordar a cena: Um silêncio profundo. A mãe do H fitando-o furiosa, e o T, enrubescido, balbuciando baixinho, a desculpar-se de qualquer coisa inusitada, talvez que não tivesse reparado que a janela estava fechada. Os olhares concentrados, perplexos, na nossa direcção. E a cara dele, atrapalhada, e por trás dela, numa descida pegajosa da qual se iam soltando pequenos nacos de creme, o pastel de nata, escorrendo lentamente ao longo da enorme vidraça, deixando atrás de si uma esteira viscosa e amarelada.

...

Volto aos dias de hoje. Constato que ainda tenho o borrachão na mão. Depois olho carinhosamente para a minha avó e, num único impulso, engulo o bolo seco que me tinha sido oferecido, e de imediato o chá todo, e a uma só vez. Custa menos o sacrifício do “humm, que delícia” do que a trigésima tentativa de lhe explicar que não gosto daqueles bolinhos duros feitos de aguardente. Até porque aqui onde me encontro não há janelas nem vidraças, felizmente.

3 comentários:

benguela disse...

SIM SENHOR!


Eu agora até votava em ti, mas é que já gastei os computadores todos a votar em mim.

Fulacunda disse...

isso já eu vi meu cabrão. vais ver. até a minha avó vou por a votar em mim de um cybercafé

Timor disse...

Eu acho que era o Fulacunda que gostava de chocar a avó a contar 3 colheres de açúcar que punha no nesquick (sim!) e dizia "vinte e quatro, vinte cinco, vinte seis!" e a avó dizia "ai filho!" Ou era o Belizinho?