sábado, 5 de janeiro de 2008

dos olivais lá de longe

Há muito tempo o meu pai foi chamado para a “guerra”, pela terceira vez. Das outras duas vezes eu ainda não era nascido e ele ficara pela metrópole, mas desta feita convocavam-no para Angola. Nova Lisboa mais precisamente, uma bela cidade transformada em bastião militar no meio de África. Nenhum de nós percebia porque alguém queria tão insistentemente um capitão miliciano com um bigode bonacheirão e uma orla de seis filhos atrás. Quando em 1971 - um ano depois de ter partido - nos chamou para junto dele, percebemos finalmente que para além do fato verde e da boina que usava contrariada e desajeitadamente nada mais o ligava àquilo que lá longe se passava no mato. Fomos viver para uma cidade calma onde a guerra não entrava. Era um mundo diferente onde as águias pairavam rente à janela e em vez de galinhas se viam pacaças e macacos à beira da estrada e lá mais para dentro, diziam-nos, até leões. E haviam também uns gafanhotos gigantes com uns bizarros chifres esbranquiçados, quase do tamanho de uma mão adulta, que nós orgulhosamente guardávamos como troféus em frascos de vidro. Na escola pública onde então fiz a 3ª classe, a um quarteirão de distância, conheci as gentes de lá. Éramos apenas três europeus, talvez melhores alunos, não sei, sei que mais poupados às reguadas que tentávamos amenizar com mezinhas à base de rabo-de-cavalo e azeite que se conjuravam e aperfeiçoavam na nossa clandestinidade de vítimas. O mais velho da sala era quase homem, e dizia-se que teria colocado duas batatas nos hercúleos bíceps que todos os intervalos ostentava para grupos de admiradores embasbacados, no que sempre acreditei. O meu maior amigo era um africano com mais 3 anos que eu e que me ensinou a dar saltos mortais e me defendia sempre das emboscadas no recreio. Lembro-me que um dia saltei do telhado do refeitório e desde aí deixei de ser o “puto branco”. Com eles passei a demorar-me mais depois das aulas e foi assim que conheci a “outra parte” da cidade. Quase sempre pó, senzalas e uma enorme liberdade que eu não sabia explicar e que ia muito para além do “brincar na rua”. O ar era mole e húmido, e a terra parecia tocar o céu e espraiar-se indolente até ao infinito. Em frente do edifício onde morava havia uma igreja onde todos os domingos me confessava de andar à pancada com os meus irmãos e de lá saía sobriamente desculpado. Quase todos os adultos que conhecia da messe dos oficiais não me pareciam ter nada a ver com aquela guerra que se dizia travar-se lá mais para leste. Aí onde vivia haviam alguns miúdos brancos e mimados que estavam proibidos de sair das cercanias e que nos invejavam a liberdade que nos era dada. Deles, com eles, lembro-me vagamente e apenas das tardes que passávamos assoberbados de um rádio-amador com que nos maravilhávamos a escutar o mundo inteiro. Aos 8 anos, aquele parecia-me ser o sítio mais aprazível e de maior liberdade do mundo. Foi lá que me apercebi de como a terra era tão grande. Fiz lá a 3ª classe e depois voltei. Voltei como lá cheguei, sem guerra, ainda. Essas questões do mundo nunca me chegaram. Mas o mundo sim, a sua vastidão. A única coisa que verdadeiramente me marcou desse tempo foi ter de voltar a enfiar a minha vida (que se tinha tornado enorme) neste mundo pequeno e encafuado.

(Pois bolama, são coisas minhas de há muito tempo, mas acho que ainda consigo perceber essa alguma 'claustrofobia' que transportas quando te levas de novo de volta. E bem sei: a falta de longitude não tem de ser interpretada apenas num ponto de vista 'geográfico')

7 comentários:

cláudia santos silva disse...

um magnífico começo, Fulacunda.

a mim, bastava-me subir à Penha, ao Gerês, andar pelas matas da Serra da Lousã... ou então, percorrer as dunas de areia das praias atlãnticas e atravessar o Sado ou o Tejo por entre golfinhod e alforrecas. ou ainda abrir um livro e ler, ir ao cinema e mergulhar nas metrópoles ou nos rápidos de um canyon.
o mundo era enorme e cheio de coisas para descobrir e a revolução consubstanciou esse sentimento de "ser livre" que ainda não tinha nome para mim.
continuo, por essas vias, a afastar-me, ainda que por momentos apenas, das pequenas cidades de província onde tantas outras vezes tropeço no Porto, em Lisboa ou em Coimbra.

(vá, oliveiras, vejam lá se acordam da ressaca das férias e respondem ao desafio...)

Anónimo disse...

Pois que estranho todos os blogs estão completamente parados...???? e olha que ando por MUITOS...
Porque será?

Beira disse...

1971.
Foste tu para lá e vim eu para cá.
E não tenho dúvidas, aqui o mundo era muito mais pequeno.
Mas ao chegar aos Olivais voltou um pouco desse mundo que ficou para trás.

Anónimo disse...

que bom começo. tem graça, quando em 72 vim de Mafra para aqui as opções incluiam Nova Lisboa.

mas não é isso que importa: o importante é que este é um texto escrito a ouro.

xai xai disse...

Vivi em Luanda entre 67 e 72 e quando retornei, confesso que nunca senti a tal "claustrofobia" de que muito ouço falar. Talvez porque a "minha" Luanda, já bastante urbana, não fosse tão diferente dos "meus" Olivais. E concordo com o Beira, se existia local na metrópole (adoro estas designações colonialistas) que tinha "espaço", era nos Olivais.
Também me sucedeu que ao chegar, e porque o meu avô que tratou das matrículas, considerou que os barracões da Damião de Góis não eram dignos aqui do Xai2, toca de o increver na Av. de Roma e obrigar o "menino", com 10 anos, acabado de chegar da província ultramarina (adoro estas designações colonialistas)a ir e vir todos os dias de autocarro para a escola. Começei logo a perceber que os Olivais eram grandes mas, ainda havia mais mundo... (não tão bom claro, mas existia...)

Fula: permite-me uma observação, essa "claustrofobia", somos nós que a criamos, e depois, presos da nossa acomodação, somos incapazes de "abrir a janela" e culpamos o "país" e os "portugueses" (os outros, claro)de ser tão fechados e mesquinhos. Se nós que somos cultos e letrados e até criamos blogues e espaços que tais, sentimos a fobia da clausura, a culpa é SÓ e EXCLUSIVAMENTE NOSSA.

Bolama: Caríssimo administrador, não sei se está na fase ON ou OFF.
Também não é importante, o que importa mesmo é que se divirta a ir e a vir a este seu espaço.
Sou pessoa de hipersensibilidade e algum atrevimento e por isso permito-me dirigir a si demonstrando uma pequena mágoa. Não teve o meu caro amigo (perdoe-me a audácia da intimidade) a atenção de desejar neste espaço, a todos nós os habituais votos de Boas Festas (salvaguardo que pode conter este meu reparo uma profunda injustiça, com base numa imperdoável distração minha). Bem sei que habituado aos grandes espaços, aos grandes rios, aos vales verdejantes se torna difícil olhar para espaços "claustrofóbicos" habitados por alguns seres pequeninos e desinteressantes. Não era minha expectativa que connosco partilhasse "ovas ou iscas", mas uma singela palavra?, caramba! é um esforço enorme... mas concretizável!
[Bolama: 95% para ser entendido como brincadeira e 5% a sério]

Anónimo disse...

2x vejo agora que tenho um email a responder - andei fora de casa sem consultar o email. Vou ver o que se passou e já digo algo

5% a sério: as boas festas foram dadas por outros co-bloguistas, donde o blog desejou boas festas às suas visitas (co-autores ou leitores) Para quê repetir?

Estive de férias, sem computador, em Lisboa. Não bloguei aqui - mas o balcão do Arcadas (ex-Tó) foi âncora de algumas conversas sobre este blog, com autores ou leitores. Assim sendo blogou-se

Quanto às claustrofobias que aí forma sendo referidas - são fruto da densidade demográfica e habitacional. E, também, das hierarquias de necessidades que vigoram em diferentes regiões do mundo. Só assim posso dizer, enquanto bolama, da falta de ar que o pequeno-burguesismo militante me causa, nem é bem a beleza natural.

Para todos um bom dia de Reis, são os meus votos

Fulacunda disse...

eheheh , olha que dois ! a desperdiçarem-se em caixas de comentários. vamos lá a elevar (leia-se a trazer para post) a conversa

(se eu tivesse tal engenho de escrita não precisaria andar aqui a fazer reloads de post que escrevi há mais de 2 anos)

já agora: a fazer fé nos comentários dos excelsius vizinhos, pelos vistos os olivais eram uma paltaforma giratória (é assim que se diz agora não é?) para o 'ultramar'. enfim, se calhar, por essa altura, era portugal inteiro ... coisas de gente com claustrofobia, adianto eu.