sábado, 29 de março de 2008


Nas tardes dos Viveiros na Primavera de 78? 8º ano, 13 anos, um poço de timidez desajustada, tão fundo poço que até afogou quase tudo da memória desse ano. Muito mais tarde haveria de recuperar como se me preenchendo, em incompetente regime de auto-construção própria entenda-se. Mas isso só uma mão-cheia de anos depois, algo até começado no ano seguinte, um 9º ano já mais desanuviado também por obra de uma turma mais enturmada e assim animando, fazendo libertar, mas tudo aquilo num passo a passo feito de passos muito pequeninos e tão lentos, assustados por vezes, aterrados tantas outras. Sei que naquele 8º ano tinha aulas de manhã e que era uma turma nova para mim onde resplandecia - em algumas disciplinas comuns - a beleza absoluta, longínqua como se de realeza mágica, coisa até divinal e por isso trituradora, devastadora, dolorosa, da Ana M. essa mesma que já em adulta passou a Ana C., então já algo humana presença. E com quem já voei transcontinentais por duas ou três vezes sem nunca lhe ter dito de tais memórias (e que a Lobita não as vá denunciar hoje, em reuniões de família ...) - acho que voltaria a corar, fenómeno que era, e continuou a ser nesses anos seguintes, o meu tenebroso dia-a-dia de então.

Mas é das tardes que querem relato, não desses trambolhões matinais. E estas eram eram passadas no futebol, ainda - sofrendo de quando em vez com as intromissões dos queques cagões da bolama, cheios de pulovers sidney e sapatinhos, a acharem-se muito importantes e crescidos, os sacanas, uns putos insuportáveis sempre com umas flausinas em torno deles, elas de calças apertadas nos joelhos e uns reis na barriga, a desprezarem os putos foleiros que jogavam à bola - não me esquecerei nunca do Tiago F. e do X. e doutros chegarem aliados ao Pimenta e à seita deste para nos roubar a bola. Nunca esqueci, nunca esquecerei - por acaso chegou o meu pai, tiveram que se refundir - mas isso talvez tenha sido um ou dois anos antes.

E foi nessa altura, no ano anterior ou nesse, que conheci o Mário W. (e foi o Abu, então ainda puto Zé, que nos apresentou e ainda me lembro dele à frente do "Canguru" a dizer com um sorriso "temos um novo amigo", e tivemos que o Mário era uma jóia), vizinho do prédio de cima, o do Zé Nuno Martins, esse onde de vez em quando aportava um "Cantor da Rádio". O Mário chegara da Guiné-Bissau para viver com a tia, a família passando um mau bocado por lá, detalhes que só alguns anos depois pude dele saber e entender, coisas das revoluções e dos horrores da família Cabral. O Mário era um amigo de mão-cheia - do qual perdi o contacto, estupidamente, pela minha inércia de termos subido para circuitos diferentes e dele ter avançado na biografia mais depressa, casado e trabalhando ainda eu andava numa tardia adolescência, e depois até enviuvando, ao que ouvi. Nessa época passávamos as tardes no quarto dele ouvindo música, uma fantástica iniciação ao "afro"- funky, disco (sim, disco), reggae, mais tarde até ska: sabia lá eu que estava a ouvir o Off The Wall, os Chic, Diana Ross, todo o Motown, tanta coisa que era aquilo tudo. Pois para mim que apenas conhecia, via os mais velhos e a rádio, o rock inglês e o rock progressivo, de todas aquelas novidades só o Marley era ícone, o resto apenas fabulosa música. Era um mundo novo que se abria, uma fabulosa discografia baseada num gosto tão diferente, tão mais burilado, tão mais rico, e um ritmo quente, diferente, como se outras coisas houvessem. Quase tudo era pertença do primo dele, um tipo mais velho, já nos vintes e tais e que veio a morrer novo, só depois percebi eu que da doença que entretanto chegou, coisas do como ele era. Música a deixar-nos sentir diferente também pela dança que ali aprendíamos, ainda que desajeitados de envergonhados, pois tanto o Mário nos dava "aulas" como a prima Z., um bom par de anos mais velha nos ensinava, com uma simpatia radiosa de fazer crescer os miudos.

Nisso já andava comigo o Organo, que mais tarde veio a ser "Úare", e ainda mais tarde "Nani" mas este mais para as amigas - um tipo que também não vejo para aí há uma década. E também um pouco o Pedro C., camarada que se afastou já bem mais tarde em corridas diferentes, tendo começado por emigrar para o Tosta. Desse grupo, ainda atreito ao estádio Marancagalha mas mais ou menos excluídos das sessões musicais, lembro o Chiquinho do prédio do Ambrósio, que tinha um riso contagioso mas ao qual as coisas não foram correndo nada bem logo desde tão cedo, e o Luís e o Manuel, os irmãos "parolos" como dizíamos, na maldade de então.

Nesses meses foi o começo do crescimento, uma coisa feita neste encerramento que aqui resmungo, entre os livros paternos, a colecção de bolso da RTP e a música a fazer-me assim. O primeiro single "Money", comprado no "Pão de Açúcar" e depois no início do ano o primeiro LP, "Animals" dos Floyd, 240 escudos comprados com 12 notas de 20, que era a semanada. O primeiro Dylan, "Desire" que tinha uma canção quase pop que falava de namoro nas praias tropicais chamada "Mozambique". O primeiro Genesis, "Wind and Wuthering". Em Julho, logo a seguir ao aniversário, já aulas terminadas, uma decisão que depois percebi como estruturante da minha vida: contado o dinheiro das prendas oscilei entre comprar um skate - como alguns queques tinham - e o duplo ao vivo "Love You Live" dos Stones. Hesitei, hesitei e fui ao Apolo 70 comprar o disco. Foi só por a tocar a "fanfarra para o homem comum" e perceber que o skate se fodesse. Dois meses antes, numa tarde sozinho em casa, roubara o primeiro SG Filtro da secretária do meu pai. Fumei-o à janela das traseiras, a olhar um Tejo muito longínquo. Um sabor que muito de vez em quando ainda me aparece - para aí há um ou dois anos regressou inopinadamente. Pode-me matar esta porra de vício. Mas então construíu-me.

24 comentários:

benguela disse...

Pedra que rola não cria musgo...

vruuummmmmmmmm! vou dormir...

Anónimo disse...

Em grande, again...

Anónimo disse...

...aguarda-se (aguardo) relatos do mundo da amêndoa amarga.
Eu tb optei pelo vinil. Deixei o skate sem uso. Confesso, tive um. Mas o pé chato...e a falta de jeito ajudram-me a trilhar o caminho. Eu fiz uma escolha menos radical. O Peter Gabriel I. Depois talvez o Second´s Out do Genesis ou um dos Barclay James Harvest...mas ...mas na primeira dezena está já um Clash..., ao qual se seguiram as gravações compulsivas das K7´s, os MP0´s dos anos 70...

cláudia santos silva disse...

grand post, sim senhor!

Fulacunda disse...

não conheço ninguém a desfolhar como tu o livro das memórias

clap clap clap

Anónimo disse...

grandes memórias, grandes memórias! a música sempre a levar-nos pela mão neste, como dizes, passo a passo. que por acaso rima com abraço.

:)

jb

maria correia disse...

Vívido e interessante, esse rememorar encantado pela música...toda a música que esta nossa geração foi ouvindo, estruturou-a, de facto. Do Ummagumma, do The Dark Side of the Moon, dos Pink Floyd, ao belíssimo e forte tema dos Genesis The Lamb lies down on broadway, Leonard Cohen, tão negro e sublime, Dylan, sempre, ao Zeca Afonso, mais tarde, ainda, o Jorge Palma, de todo o jazz ouvido, Miles Davis, a libertação quase total desse jazz (digo quase total porque havia «malhas» a que se seguia a improvisação, ouvia-se música, liam-se as letras, falava-se sobre o que transmitiam, transmitiam ideias, valores, estruturas... e tudo isso acompanhava as nossas tardes de Março...e acompanhará sempre...para não falar da literatura, do Baudelaire lido ao som dos yes Tales from the Topographic Oceans --fabulosa sinfonia rock...aos treze anos já se ia lendo um pouco de Marx, falava-se da exploração do homem pelo homem...e de utopias...um dia ainda hei-de escrever um texto decente sobre a forma como a música que se ouvia na altura influenciou e estruturou uma geração..não me posso, claro, esquecer dos franceses, ainda me lembro de comprar o SETE, no Tó, por causa de um artigo sobre Leo Ferré, que ainda hoje guardo...e Brel, sempre, sempre, Brel, a humanidade de Brel, a angústia, aquela liberdade maravilhosa e sublime de Le Plat Pyys, e a harmoniosa doçura pungente de La Valse à Mil Temps...há-que escrever um livro sobre tudo isso. Salut!

bolama disse...

motorhead: o tempo da amendoa amarga, mais mes ou menos mês, procurei retratá-lo aqui: http://olivamos.blogspot.com/2008/01/olivais.html

(foi um texto que escrevi há anos, e que também aqui meti no primeiro post do olivesaria e que apaguei, tendo-o recolocado, retocado: sobre isso há coisas para dizer. Ou seja, há flausinas que crescem flausinas, há gente que flausina na vida. Raramente, em 43 anos bem vividos, algo me repugnou tanto como a flausinice, nada importante para a nossa vida, entenda-se, que me levou a apagar o texto deste blog. Flausinices que, olhando para trás, estavam no embrião, diga-se). Gente de merda apenas do nosso bairro. Siga a marinha, dizia-se, que cada um se auto-retrata como bem quer.

Maria Correia, eu aos 13 anos do Karl MArx tinha lido o Karl May, coisa de chegar mais cedo ao 25 de Abril. do zeca afonso conhecia o "meu menino é d'oiro", single de fado de coimbra. do muito que referes a seguir chegou-me a seguir, não o podia colocar em 1978. Mas obrigado, muito, pelo comentário - é mesmo como os ícones estruturavam a geração (ou bocados dela) que eu queria sublinhar, não tanto a vida mas os ícones e como eles eram veículados.

Fulacunda, exageras, conheço olivalenses que quando se deixam de estatísticas e libertam a sua sensibilidade (sim, sensibilidade ...) muito nos deixam memorizar.

Aos outros, passo de corrida ... transcrições de memórias, já!

Anónimo disse...

Aguardo essa (ou essas) amêndoa amarga vintage, ...trintage.. melhor dizendo....
Daqui a pouco parece que estou no CM fazendo tempo para ir ao Restelo ver a Siouxie and the Banshees ou otrsa qualquer banda

bolama disse...

não me fiz entender, a amendoa amarga já está publicada - mesmo na sua ausência. segue o ligação que aqui deixei
abraço, e bom capitão cook

Anónimo disse...

Eu sou um gajo do norte (Olivais), apesar de nesses tempos circular entre sul e arredores (Portela,Alvalade, Mosacavide, Bairro Alto, etc.). As tardes e manhãs nos Viveiros, eram o ponto de encontro de uma geração, que vivia num bairro, que ainda hoje, apesar do "progresso" é espectacular. Esses foruns nos Viveiros, foram o alierce para que o nome OLIVAIS, não deixasse os Olivais Norte, Olivais Sul e Olivais Velhos a Quinta do Morgado e mesmo a Encarnação ganharem preponderância. Quando se perguntava e se pergunta a alguém destes cinco espaços (que apenas as Oliveiras sabem identificar e delimitar)onde vive, a resposta é OLIVAIS!
Naquele tempo apesar de viver nso Olivais Norte, circulava por todos os OLIVAIS, tendo amigos no bairro inteiro, tendo inclusive casado com uma sulista (Cidade da Beira).

Por tudo isso OLIVAIS SEMPRE!!!

JPF disse...

Este tema da música, é quase tão bom como o das namoradas (os) ...

Pena que não tenho tempo... um dia destes contarei a minha relação com a música, e lembrarei os tempos dos Viveiros, tempos do «Rock in Stock», de Luís Filipe Barros...

Beijos e abraços!

Anónimo disse...

Esqueceste de referir que foste um percursor da ganga...o que te valeu na altura um classificativo social menos simpático, mas que veio a revelar-se visão estratégica.

eV

bolama disse...

Tens toda a razão, esqueci-me disso. Mas, pensando bem, acho que isso veio depois, em 1978 (o ano aqui objecto) ainda não havia diálogo com os queques (como se disse acima estava nas distritais). Só depois é que os queques achavam que a ganga era de "filho de porteira" - isto até irem todos comprar levis 501, que foi dois meses depois

Anónimo disse...

Uma bola nova ainda te arranjava... Mas Parece-me que precisas é de tratamento médico, ó Bolama. Ou será que a verborreia já faz parte da terapêutica?

Anónimo disse...

ele andava de Lois...não se lembram

Fulacunda disse...

anónimo,

vai lá ver se eu estou aqui:

http://www.shibumi.org/eoti.htm

(e da próxima vez que quiseres insultar alguém sê um homenzinho e vem de "cara destapada")

Anónimo disse...

Tens razão, ó "fulacunda"... Isto do anonimato na ofensa é só para gente que não os tem...!

Assim, repito:

Uma bola nova ainda te arranjava... Mas Parece-me que precisas é de tratamento médico, ó Bolama. Ou será que a verborreia já faz parte da terapêutica?

bolama disse...

Fulacunda obrigado. Mas não houve nenhum insulto para aqui - imputar verborreia é só crítica, não ofensa. (mas estiveste bem naquilo do "fim da internet", "ele" há cada coisa)
Depois há um problema ... verborreico por assim: se o blog é anónimo, se a gente é anónima, como criticar comentários anónimos? Se linearmente ficámos numa encruzilhada, não achas?

"Gente de merda do nosso bairro" - talvez seja um cúmulo de verborreia mas: a. não preciso da bola, não ma chegaram a roubar, como acima está; b. "gente de merda apenas do nosso bairro" significa algo diferente de "gente de merda do nosso bairro" - eu sei que quem não sofre de verborreia procura abreviar. Mas arrisca perder o sentido - as palavras, mesmo em excesso, dão-no.
c. deixo a caixa de comentários - uma continuação, se valesse a pena [e não vale, exactamente por causa do desprezado "apenas"], far-se-ia de nome posto. Não entre um falso anónimo verborreico e um anónimo entre aspas

xai xai disse...

isto está an(ón)imado!

eu cá estou com o Bolama e o Fula.

é preciso ir buscar os amigos do meu irmão ao Cambodja?
vem o Tira-Picos (que tem um "chino" curvo para assaltar nas esquinas) mais os irmãos e os anónimos vão aos saltos pedir um acesso!

Fulacunda disse...

Eu não sou anónimo, sou o fulacunda, para quem sabe quem sou. Tu és o bolama para quem sabe quem tu és. E o comentário do ex-anónimo deixou de o ser pelo simples facto de ter sido usado um nickname, mesmo que entre aspas. A diferença é, sabemos, enorme. Mesmo entre aspas alegou d'as suas razões. No meu entender foi ofensivo. No entender dele, presumo, terás tu sido ofensivo, (cá está o nickname a apontar razões, locais, nada anónimo, e ainda bem). Fica melhor assim, e mais claro. Suficientemente claro para eu saber que não é coisa onde me intrometa. E por isso saio aqui, vou até ali ...

... antes que venham aí os amigos do irmão do xai

Timor disse...

Bolama, os queques cagoes da Bolama podiam ser tudo isso, mas sacanas nao, e tinham uns dos sorrisos mais bonitos dos Olivais (5 deles pelo menos). Mas gostei de te ler, tens jeito para conduzir esta maquina do tempo. E o Beira tambem.

E sobre o assunto aqui de cima, lembras-te que conversamos no outro dia sobre a audiencia da Olivesaria e os voyeurs...

maria correia disse...

Há que tempos não ouvia falar no Cambodja...desapareceu, deu lugar á feira do relógio...outros tempos...

bolama disse...

Timor, estamos em 1978, daí os sacanas (e os pull-overs sidney e as calças apertadas)

sobre o resto timor o blog abriu com caixa de comentários e emails ao lado - quem naõ gosta (e ainda por cima sabe quem está "escondido" debaixo dos in-pseudónimos) basta e sempre bastou escrever (do "tira lá isso, pá" ao "seu filhodaputa parto-te os cornos") e cada um como cada qual. O resto é nada. beijos