domingo, 9 de março de 2008

Onde vivo bastas vezes bons e mais velhos amigos (desses que, afinal, se fazem em todas as idades, vou-o descobrindo agora já não disso céptico) narram-me algumas das suas antigas andanças, recordadas em noites assim tornadas como se blogs colectivos à volta das mesas, quando galinhas, caranguejos, camarões e piripiris já se deglutiram e nos alargamos nas aguardentes, às vezes vínicolas mas mais das cerealíferas. Contam-me essas histórias acontecidas enquanto eu e os meus andávamos nas coisas que aqui temos vindo a recordar, dos idos do maracangalha aos atrevimentos do Bairro Alto.

São histórias que sobrevivem, pertenceram a tempos de utopias, muita boa-vontade, quilos de ingenuidade, outros tantos de arrogância, abnegação extraordinária, malfeitorias muitas, desgraças imensas digo-as no fim, sem esquecer o que de bom também delas brotou. Algumas que adoro reouvir são as daqueles que calcorrearam matos longínquos apresentando cinema ambulante a gente que nem fotografia conhecia. Aldeia a aldeia, noite após noite, dessas de dormir na esteira, montando gerador e ecrã - esse a quem as pessoas iam espreitar por detrás procurando por lá aquela estranha gente que ali as visitava. Aldeias essas onde comecei a surgir vinte anos depois, elas talvez não tão diferentes assim.

Iam então crentes da necessidade de partilhar algo, de introduzir o "cinema", e de que isso em muito melhoraria mentes e prazeres alheios. No início desses tempos carregavam os "documentários de notícias" (lembram-se de que também os tínhamos na 1ª parte do cinema?, ainda que coisa muito "Estado Novo", depois deixados cair pela expansão da TV), muito revolucionárias então, mensagens de contrutores de nações. E ainda filmes que consideravam adequados, de diálogo fácil para a gente que presumiam ir encontrar e que tanto desconheciam. Filmes para gerar o apreço ao cinema que procuravam criar, partilhar. Jovens então, logo escolheram as fitas de Chaplin, certos que o riso ternurento, até poético, do Charlot cativaria pelo mato fora as atenções virgens de tudo aquilo. Com a vantagem de ser mudo - prescindindo da leitura de legendas em gente analfabeta ou de dobragens em gente que não entendia português.





O que me contam do que ali os espantou foi a total adesão, até timorata no susto com tanto movimento julgado real, espantada com a origem de tais seres afinal não ali, não por detrás dos "panos". Mas uma adesão inesperada, uma adesão sem riso, uma total adesão solidária, pesadamente silenciosa, de silêncios até entrecortados por lamentos com todas aquelas desventuras, dores e falhas do Chaplin de sorriso triste. Aquela população virgem de imagens gravadas, até da sua notícia, logo ali companheiros, comentando lamentando os sofrimentos do pobre Charlot, feito, ainda que num mundo dali tão diferente e desconhecido, imagem própria. E também felizes pelos fins acontecidos, pelo continuar bamboleante, afinal não vencido do homem - ali não personagem.


Gosto dessas histórias, porque me lembram esse campo dito "mato" que sempre me faz falta. Porque me sublinham a incompreensão que sempre me acontece quando lá. Mas mais do que tudo porque me recordam o meu pai António contando-me de quando viu pela primeira vez "A Quimera de Ouro", nos anos 30 ou talvez inícios de 40, em dias de Carnaval no Porto. Cinema cheio, gente jovem e feliz, carnavalando na ida ao cinema, nesse então sinónimo de dia de festa, barulhenta do dia e da idade - essa gente já do cinema sonoro, mas que ainda viram o Valentino e esses. E que, contou o pai António, correndo o filme, logo, logo, o cinema se calou, agora nada carnavalesco, absorto mas nada rindo do tal "filme cómico", também esmagada e solidária com as aventuras titubeantes do garimpeiro infortunado.

Reagindo ao trágico disfarçado de cómico? Talvez nem tanto, mais me parece que percebendo a angústia cantada em cómico - tal como tantos anos depois longe longe aconteceria com gente afinal não tão diferente. Pois não tanto o trágico que, abrupto, interrompe, mas essa angústia que continua porque faz sempre parte. Que, assim, faz continuar.

É preciso ser Chaplin para tal provocar? Não, nem mesmo pertencer à galeria dos imortais, Tati e esses. Aqui o João Belo já recordou o Sam (e que grande post, aquele que narrava a tortuosa oferta do título de livro) - e lembro-o recriado pelo Mário Viegas na TV. Gargalhávamos? Sim, às vezes. Mas era muito mais do que isso.

Explicar, isto do como comunicar para além dos códigos abissalmente diferentes? Do como o aparente afinal é esquecido e se partilha o verdadeiro? - não faço a mínima ideia.

Mas lembro as histórias e pergunto-me agora do que é o celebrar gutural (que o JB descobre abaixo, nos putos da fnac ritualizando na comunhão do riso alvar) em torno dos badarós?

E encolho os ombros, não o porquê do nosso (auto)badorizar, mas sim o para quê dele - porque um qualquer gajo conta anedotas, ou é anunciante, ou é giro, ou escreveu O Meu Pipi (alguém consegue reler O Meu Pipi?), ou é político que (às vezes) pensa como nós? Ou porquê badorizar os outros, dizendo-os ignorantes, povo, riso estúpido bom para ele, como se "povo" assim seja? Quando afinal, diz-nos a história (pelo menos esta história) nada disso é verdade, badorizamo-nos, badorizamos, por mera decisão. Preconceituosa, ignorante.

Porquê o nosso (auto)badorizar? Talvez uma tralha brotada da nossa actual obrigação de ser feliz ("Seja feliz", diz o locutor televisivo na despedida, às vezes "irónico" no "Faça o favor de ser feliz"), coisa da confusão, de nem percebendo como isso do ser "feliz" se vem procurando com alegretices. Roucas, rápidas. Incompetentes. De grosseiras.

Tudo isto só mesmo para amputar a tal angústia partilhada, partilhável, como se coisa má. Só mesmo para, assim, sermos menos qualquer coisa. (Mesmo que na Fábrica do Braço de Prata afinal da "cultura", afinal no que é o chic pensante lisboeta desse algum hoje. Palco nada refúgio do badaroísmo. Palco selvagem. Porque muito longe do mato? Não. A pergunte é mesmo "por que é que muito longe do mato"?)

10 comentários:

cláudia santos silva disse...

essa história do cinema levado ao meio do mato, fez-me lembrar as sessões de cine-clube (meados dos anos 70) em escolas, juntas de freguesia e orfanatos, para ser possível rir com o charlot

:)

(e o mato ali dentro do burgo, ali mesmo, mesmo ao lado)

e as tardes de domingo no cinema, ou televisão, com o zorro, o tótó, o cantinflas, o buster keaton.

e a primeira vez que me levaram ao cinema à noite, ver "mon oncle", ah, que hora inesquecível!

hoje, só na tv por cabo se pode assistir a esses filmes.
não passam nos cinemas, não passam na televisão estatal (e quando passam é a horas inaceitáveis) e só sobra esse humor televisivo e repositório de um anedotário...
de vez em quando, lá nos dão um pouco de humor britãnico, sempre dá para variar. as soaps americanas, quando de qualidade, também ajudam.

quando, cá por casa, se revisitam esses lugares do cinema, os meus filhos divertem-se sempre.
as crianças continuam a ser crianças, diferentes, mas nem por isso, daquilo que nós fomos.
é uma pena que não haja uma maior variedade de registos humorísticos acessível, de uma forma simples e sem o pretensiosismo dos canais de élite.

joão belo disse...

"E encolho os ombros, não o porquê do nosso (auto)badorizar, mas sim o para quê dele - porque um qualquer gajo conta anedotas, ou é anunciante, ou é giro, ou escreveu O Meu Pipi (alguém consegue reler O Meu Pipi?), ou é político que (às vezes) pensa como nós? Ou porquê badorizar os outros, dizendo-os ignorantes, povo, riso estúpido bom para ele, como se "povo" assim seja? Quando afinal, diz-nos a história (pelo menos esta história) nada disso é verdade, badorizamo-nos, badorizamos, por mera decisão. Preconceituosa, ignorante.

Porquê o nosso (auto)badorizar? Talvez uma tralha brotada da nossa actual obrigação de ser feliz ("Seja feliz", diz o locutor televisivo na despedida, às vezes "irónico" no "Faça o favor de ser feliz"), coisa da confusão, de nem percebendo como isso do ser "feliz" se vem procurando com alegretices. Roucas, rápidas. Incompetentes. De grosseiras.

"

Não sei se terei tempo ou discernimento para tal. Mas se os tiver, será por aqui, por este excelente naco de pensamento, que tentarei continuar a roda das ideias.

O lugar que o risível ocupa na nossa cidade.

:)

maria correia disse...

Tive finalmente algum tempo para ler este longo, muito bom e algo enigmático texto de Bolama. Há duas, pelo menos, questões pertinentes: Como pode Charlot comover duas populações tão diferentes uma da outra: a do mato e a da cidade. Uma negra, outra branca, pelo que entendi...A outra questão, é a de por que nos «badorizamos» em vez de nos «chaplinizarmos»...Em resumo, creio porque Chaplin criou um humor universal, um humor que é tragicómico que, fazendo rir ou sorrir, reflecte a tragédia da vida e a supera com esse sorriso inteligente...e lá segue o herói, estrada fora, bamboleando-se, agitando a bengala, como quem diz: apesar de tudo, venci, eu, homem,ser humano, venci todos, até aqueles que não gostavam d emim, que me ridicularizavam, que me bateram. Ninguém me destrói. Ninguém tem esse poder. Isto cativa qualquer um...Charlot tem a fragilidade de todos nós, tem as lutas que todos nós temos com os vilões da vida. Por que nos «badorizamos»? Porque perdemos a capacidade de ser Charlot, de pegar em temas clássicos, querendo com isto dizer temas que tocam a todos, universalmente, com inteligência e humor. Agarramo-nos a um humor de fait divers, ainda por cima barato, que hoje fará gargalhar um pouco, amanhã já perdeu substância...porque motivos de FORÇA MAIOR nos obrigam a adaptar-nos a «formatos» feitos por pessoas que pensam que pensam. Ainda hoje consigo rir e, não só, comover-me com Charlot. Os meus filhos riram com Charlot. Tenho a certeza que as gerações vindouras ainda se sentirão tocadas por ele. Chaplin é aquilo que um amigo meu costumava dizer: É GRANDE.

benguela disse...

Eu cá não é pra chatear, mas gramo mais do Buster Keaton...

bolama disse...

benguela, o buster keaton não passou no mato, não me dava jeito para a historieta. está ali no "tati e outros", claro.

benguela disse...

... nem eu!

Timor disse...

Boa, boa Bolama. Lembraste-me de algo que li ha muito tempo e nao consigo localizar, vou ficar uns dias a remoer. Acho que temos uma relacao complicada com o humor, eu pelo menos tenho. E falta de concentracao se nao for ao vivo e de preferencia com gente conhecida como ja aqui disse a Rapariga. Aquele rir de chorar e doer a barriga foram muitas tardes e noites nas escadas dos Olivais e muitas das vezes que nos revemos. Rir e chorar profundamente implica um reconhecimento - uma das maravilhas da organizacao espacial (quer dizer escadas e muros) dos Olivais e das fantasticas horas, dias, meses de lazer. Hoje li um artigo comentando a visao americana do humor ingles. Mas ja e tarde, fica para outro dia. E desculpem a falta de acentos.

bolama disse...

bengas, quem enjoa no mar morre no mato ...

benguela disse...

Nem todo o mato é oregãos.

cláudia santos silva disse...

é, timor, recordo que uma das últimas vezes em que me ri assim, até às lágrimas, foi na tua companhia e de mais umas moças do olival e a propósito deste olivesaria!
grande noite, rapazes...