quinta-feira, 24 de abril de 2008

Memórias de um período revolucionário (1978)


(Amanhã não estou por ‘cá’ pois devo-me a um compromisso gastronómico de 3 dias, e hoje pouco estou já que me (re)parto pelos afazeres da profissão, por isso peço que me desculpem de comemorar o 25 de Abril a repetir-me com texto nada novo repescado daqui … mas não queria deixá-lo sem nada. Até porque, seguramente, seja de que lado o olhemos, o 25 de Abril fará sempre parte das memórias dos Olivais. E já agora, destas fará parte o Chico, meu inseparável companheiro de infância.)



Não que eu fosse do outro lado, que nem podia com esses outros de samarras e sapato afunilado. Basicamente era do contra, embora naquela altura quem fosse do contra fosse obrigatoriamente dos outros. Mas eu nunca fui, nunca fui de nenhum, o que era uma forma de ser um bocadinho de todos. E por ali andava nas meias águas liberais, disponível assim para ganhar uns cobres a colar cartazes de diferentes cores, que nisso também havia ideologia, pelo menos para um miúdo de 15 anos. Mas daqueles não gostava, achava-os bárbaros.


Desde o tempo do Pinheiro de Azevedo a gritar “O Povo é sereno. O povo é sereno”. E a turba louca em direcção à rua augusta, pouco importada com o que ele dizia, com o que ele dissera, com as ovações que lhe dedicara antes, e depois a voltar em cavalgada, a fugir dos gases lacrimogéneos que a barravam lá do lado norte. “O Povo é sereno, o Povo é sereno”, e naquela catadupa a caírem, espezinhados, perdidos uns dos outros, agora todos em trote na direcção do rio, e ali sereno só o meu pai abrigando-nos aos dois junto da estátua do D. José, que “isto já passa, fiquem aqui perto de mim”. E a multidão a trocar o passo, que dos lados do rio são agora os disparos da G3 da COPCON, e eles em magote a retrocederem, e o baque inevitável dos que ainda iam com os que já voltavam, e o Pinheiro de Azevedo a continuar “O Povo é sereno, o povo é sereno”. Foi por aí que deixei de gostar deles.


E depois foi lá por Chelas também, lá onde se construía um bairro novo e para onde nós partíamos a fazer passar a tarde. Era a fase da expropriação das casas, e todos os dias mais um novo episódio, quase sempre o mesmo, que seguíamos com um voyeurismo cinematográfico. O “fascista, fascista”, e este a fugir, esgazeado e aos tropeções “no ai acudam-me que sou pai de família”, de cabeça a sangrar e a cara distorcida do pânico enquanto se finca ao varão do autocarro de porta atrás. E o povo impaciente, que o fascista partiu e deixou ficar "tudo que agora é nosso", e agora guerreando-se já pelo condomínio a ocupar, e o militante da LCI(?), a tentar arbitrar, que “camaradas, há-de chegar para todos, não sejamos como eles”, e depois a recuar hesitante, com a reacção daquela gente, que tão logo se tentava o tirar-lhes da habitação que ainda agora lhes tinha sido devida da acção do povo. E de vez a vez a tropa, chaimites, uns tiros de G3 para o ar, rapazes de bochechas coradas, aquietados, apenas a fazerem-se notar, a subir o queixo para aquela gente toda, não pelas razões que travavam, mas apenas pelo fulgor da juventude. E as mocitas a acercarem-se deles, se podiam subir, “suba menina, suba, e então também vai ficar a viver por aqui?”. E a multidão a virar-se de súbito para os lados do rio que parece que por ali anda outro, “fascistas, fascistas, a construírem andares com o dinheiro do povo”, e já mais famílias a perguntarem onde, agora sem o militante da LCI que afinal também não era flor que se cheirasse. E eu não gostava daquela mole de razões, bruta, exaltada, ladroeira.



Era contra, mas não era dos outros. O Chico era, eu era apenas do contra. E a pintura do Lenine, enorme, ali todos os dias a ocupar a fachada do prédio dos professores, a rir para nós com a careca minuciosamente pintada de reflexos luzidios, e hoje, assim noite escura, e a lata de tinta que até nos lembrámos haver em casa dele. E agora a fugir pela azinhaga, e aquele tipo barbudo e enorme, “mas como pode um gordo destes correr assim tanto”, mas nós sendo dois e quase gémeos nos instintos de tanta malandrice a fazer-nos cada um derivar para o seu lado. Foi ao Chico, que só podia apanhar um. E depois aquela gente toda enrubescida, a gritarem-lhe “puto de um cabrão, fascista de merda, ficas aí até isso sair tudo”. E ele lá no cima das escadas a limpar o enorme borrão branco com a sua própria camisa, de tronco nu vergado de vergonha, minúsculo na gritaria daquele bando enraivecido, e um deles, mais perto de mim, estranhando e a interrogar-me “e tu puto, porque estás a chorar, é teu amigo não?” e eu mudo, apenas esperando que o Chico descesse, pouco me importando já com eles, com a revolução e com o careca pintado na parede. E depois os dois a voltarmos para a rua, já sem Lenine, emudecidos, a darmos as costas ao tempo, ansiando para que a distância se fizesse, até crescermos e eles envelhecerem e por lá (naquele dia) ficarem, até a revolução voltar a ser outra vez uma coisa boa.

2 comentários:

joão belo disse...

Fizeste bem em trazer este texto. E a memória do Chico. Não me lembro dele sem ti. boa história de um tempo que foi uma espécie de avalanche.


:)

Anónimo disse...

Comentando o parágrafo verde:
Tenho um pressentimento que está com o Benguela na "OviBeja".
Local de culto e experimentação.
Goza bem.