terça-feira, 10 de junho de 2008

Se bem me lembro ...


tenho memória de actor. quer dizer, não me lembro de quase nada e depois, lembro-me de tudo. ficou-me dos tempos do palco, essa memória assim, por ressonâncias. às vezes ando pela vida meio perdido a pensar que chegou a minha hora do esquecimento - lembro-me sempre do manuel joão gomes, enciclopédia viva dos seus colegas no Público e que acabou os seus dias enterrado no buraco negro do tempo sem avanço nem recuo - e depois embato em qualquer coisa e desatrelo um fio que vai buscar histórias sem fim ao que somos, fomos. quando começou a olivesaria, achei-a uma benção. tinha na altura um projecto de escrita: "Nós nas paredes", narrativa sobre os nossos quarenta anos. digo nossos, os meus, os da malta que andava na casa do Pedro Queirós, ali na Praceta Aleixo Corte Real, onde podiamos escrever nas paredes (e onde, de tudo isso, só resta aquela pintura no corredor que o Pedro Sá fez num verão de não sei quantos). onde podíamos fazer tudo, de tudo, dizer poesia, fazer concertos, teatro, sex, drugs and pouco rock em roll, mais sinfónico, pink floyd, génesis, por aí, éramos muitos. na altura não nos distribuíamos como aqui, por ruas, se fosse a inhambane ganhava: os alpis, tozé, pedro e joão, o pedro, irmão da nossa inhanbane. Mas éramos muitos, o abilio, rosinha, o buracos, o pitagroz, a cristina, a xana, a ana paula. As noites com o teatro das belas artes, aquela casa, já falei dela aqui, hei-de falar dela muito mais vezes. hei-de falar dela até ao meu silêncio. Foi lá que conheci o Pepe Blanco, que antes de se suicidar de vez me falou com enlevo da sua ritinha que estudava em Londres e que quando viesse iria dar que falar, atão senão deu Pepe, por esse lado dormirás o sono dos justos, ou o Rogério de Carvalho, encenador que se afundava no sofá da sala quando eu e o Pedro Alpiarça entravámos vindos de representar o nosso espectáculozinho no Marítimo de Xabregas e ele, embasbacado porque nós éramos actores, e que bom, e isto e aquilo, era um negro baixinho a enfiar-se por dentro do sofá, e eu a perguntar-lhe, também gostas de teatro, sim, mas estás ligado, encolheu os ombros, como é que te chamas, perguntei, Rogério, Rogério de Carvalho, sacana, tu és o grande Rogério de Carvalho, dei-lhe um texto meu, a minha primeira peça de teatro, gestalma, um mês depois sempre que o encontrava apresentava-me aos seus amigos - entre os quais o malogrado Luís Figueiredo Tomé no Teatro do Século, falo do Luís porque era daqui, dos nossos Olivais - dizia, é autor, o sacana do Rogério, tive a sorte em trabalhar com ele em 98, um espectáculo para o primeiro estágio internacional de actores lusófonos, em tetum, crioulo, português, sem acordo ortográfico, fronteira, nascidos de dois ateliers, um de escrita e outro de representação, eu dirigi o primeiro, o Rogério o segundo, dez anos depois, há meia dúzia de dias, telefona-me um dos actores, agora senhor director do Festival de Teatro de Piáui, a convidar-me para ir lá em agosto repetir o trabalho com o Rogério, são destas coisas que me lembro quando me esqueço de tudo, a minha vida nunca teve sentido de outro modo, tem-no quando se espelha nos olhos dos outros, é isso que o teatro, o cabrão do teatro, me ensinou, estamos sempre, desde o nascer ao deitar, e uma vida é assim breve como um dia de vinte e quatro horas, diante do olhar dos outros, somos à vez espectadores e actores, devemos por isso trabalhar a forma como olhamos o mundo, olhar é agir, se eu tivesse um slogan seria esse, olhar era agir naquela casa onde escrevíamos nas paredes, eu já não sei o que é a nossa vida agora, uns de nós progrediram nos negócios, outros no comércio por atacado, a retalho, outros nas letras, nas artes, nas humanidades, nas ciências, nas leis, houve os que morreram, lembro-me do joão que se atirou dum prédio ao pé da gilauto, o irmão dele, o Pedro tinha sido meu colega da Comuna, o Nuno, a Teté, atropelada ao pé dos Jerónimos, dia de luto nos Viveiros, há uns de nós que se foderam, lixaram-se, por vezes penso que não, a moral dos aflitos, dos contritos, dos vencidos, depende de quem escreve a história, do lado em que sopra o vento, o que interessa, a única coisa que interessa nesta puta de moral moralista com que vou definhando o espírito é saber que estamos vivos e a partilhar este mistério de não sabermos porque é que ainda nos aguentamos, porque é que ainda estamos vivos, porquê nós e não os outros, e tudo isto porque comecei a falar da morte, a gente escreve, a gente escreve-se mas quando chega à D. Morte já não somos nós que falamos, que escrevemos, é qualquer coisa que temos dentro de nós, fora de nós, tem de ser qualquer coisa magnética, que nos puxa, que nos atrai, a verdade é que já nem eu sei onde este texto está, está sol, a luz bate-me no écran, não vejo as palavras, não conduzo mas deve ser a mesma sensação que se tem quando se vai na estrada ao fim do dia e aquela luz assassina nos cega, aqui é a mesma coisa, embalei, meti a quarta e agora deixo-me ir, as palavras, a puta das palavras que andam sempre à nossa volta, como dizia o Kitos, quer dizer, o Mamadu, são como moscas, as palavras, para um analfabeto as palavras têm uma existência física, são objectos, somas de letras, objectos mais pequenos, têm formas, densidades, às vezes devíamos encomendar a leitura das nossas palavras aos leitores analfabetos, na sua virgindade diriam coisas surpreendentes sobre aquilo que escrevemos, cada letra seria uma pequena escultura, eu sei, já me perdi, mas há muito que só o mais desatento ainda lê esta canzoada, soltei os cães, gosto desta ideia de que a escrita é soltar os cães no mato que somos nós, vou a ver se me recupero, sem ir lá atrás, não quero, tem de haver alguma rebeldia nisto, porra!, uma vez por causa de um porra ofereceram-me um emprego, eu tenho histórias assim, inadvertidas, tenho e não tenho, tenho e fogem-me, estão dentro de mim mas eu não sei onde, foi por isso que quando me convidaram para escrever na olivesaria eu achei ainda bem, estes gajos vão escrever as suas histórias e eu vou vampirizar tudo isto e escrever um romance, dois, três, não foi isto que até agora aconteceu, ou se o for está a acontecer mais devagar, eu gosto quando as coisas acontecem mais devagar do que quando as tenho na minha cabeça, o que está a acontecer é, como diz o Beira, há coisas que sim outras que não, leio as imagens, os bonecos, com a mesma generosidade com que sei que vou ser lido,não sei o que resulta disto, sei que me sinto bem, sinto-me em casa, sinto-me em casa numa casa maior, não são as pessoas do passado, com a maioria das quais não tive realmente grandes coisas para lembrar, são as pessoas do presente, meio gente meio avatares, gosto de imaginar que a Timor me lê em Londres, quase não a conheço, ela não é ela, é as imagens que me suportam, vocês hão-de achar isto pimba mas sempre que leio o nome dela ouço-o através da voz do luís represas, adoro aquela voz, se um dia me aparecesse um duende eu não pediria resmas de gajas, barris de petróleo ou lingotes de ouro, como pensava que seria assim se alguma vez me deparasse com a lâmpada de aladino, pediria para por um minuto que fosse ter a voz do luís represas, os nossos nicks somos nós, os nossos nicks somos nós de outro modo, Bolama, Fulacunda, Xai Xai, Beira, A rapariga que veio da província, estes nomes ressoam-me, lembro-me de coisas que nunca existiram, que ainda hão-de existir, sabe-me bem a vida assim, tão longe da literatura, tão perto da vida, não sei porquê agora associo automaticamente o Fula a um Jantarinho de Feijão Branco, a um delicioso jantarinho de feijão branco, gosto de cozinhar, tenho as ementas no Benguela todas no desktop, desde que o vi com pose séria no fogão da Quinta da Abóbada disse, vou atrás dele que vou bem - até com o próprio Xai Xai de quem me lembro de tantas coisas e com quem a memória tem um à vontade que não tem com outras pessoas é mais o prazer de estarmos juntos e vivos e ao mesmo tempo do que a memória deste ou aquele feito - não vou escrever o romance, merda, nunca escreverei a puta de um romance, vou ficar por aqui, escritor de posts, eu dizia que o meu pai era filósofo porque se tinha formado em filosofia, o meu puto vai ter de encher o orgulho quando disser: o meu pai escreve posts, estamos sempre, estamos sempre diante do olhar dos outros, é o que vos digo com a minha alma de actor, um tipo não deixa de o ser nunca, em vida, de representar papéis, um papel, digo, digo-vos, estamos sempre, sempre diante do olhar dos outros. é uma condição.

16 comentários:

Anónimo disse...

Ó Vitorino, que tem isto a ver com os olivais?

;—)

Anónimo disse...

Quais post’s! Tens uma sorte do caneco João Belo, quase te invejo. Sabes porquê? Tens essa singularidade de poder misturar a tua vida emocional com a tua vida profissional. Normalmente o resto do pessoal divide a vida em dois, o trabalho, a carreira, a sedução do sucesso, e a outra, a que chamamos a nossa vida, onde podemos escolher com quem queremos estar e montamos ao redor de nós as coisas com que queremos ficar e onde nos vamos ajeitando a degustar tudo, até mesmo essa parte da nossa vivência profissional que se passa lá do outro lado. Mas depois, todos os dias, dividimo-las, são sempre duas vidas em nós que pouco se justificam misturar. Arranjamos equilíbrio neste correr dual, generalizado entre nós, e por isso nem damos conta nos outros deste estranho fenómeno de esquizofrenia. Quando apareces tu a contar a tua vida tão amalgamada com a tua profissão, a tua vocação, saboreando as duas a uma só vez, algo nos soa estranho sem que o saiba explicar porquê. Depois lá acabo, como sempre que te leio, por vir a perceber porquê: és nisso um gajo de sorte pá, nisso de poderes concentrar tudo do mesmo lado, do único lado que há em ti, e era assim que deveria ser também para mim, é assim que a maior parte de nós (acho) gostaria de ser.


(chamada de atenção: às tantas, no teu texto, escreveste “puta”. emenda, talvez :) )

benguela disse...

Fuouda-se! Bela posta ó Belo!

Anónimo disse...

é uma condição, sim, caríssimo joão belo.

rapariga da província (sem login que isto dos nicknames dá muito trabalho :)

bolama disse...

quem é (são) o(s) dramaturgo(s) dessa condição?

Rua Cidade de Inhambane disse...

Tózé Alpiarça e Pedro Queirós são dos Olivais, Chaimite.
Gosto dessa pintura naífe, não me lembro quem era/é o Pedro Sá!

Anónimo disse...

ah pronto, se são dos olivais tudo bem.

maria correia disse...

Conheci a casa do Pedro Queirós, conheci o Pedro Queirós, conheci o João Pitagroz...já disse um dia que fui amiga do Pedro Alpiarça, na época doirada dos 14 aos 17 anos, não o conheço a si, creio, João Belo, mas gosto miutíssimo sempre de o ler...E escreva lá o romance,João Belo, precisamos de pessoas que escrevam assim. Com garra. EStou farta da pseudo-literatura que se edita por aí, nossa e traduzida. Por vezes dão-me cada coisa para traduzir que penso, sinceramente: para quê editar isto?????? Vá lá, João Belo, escreva o romance...Ofereço-me desde já para o rever. Se precisar, claro...Obrigada pela sua escrita!

xai xai disse...

JB: os teus textos deviam ser escritos em pautas de música.

xai xai disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo disse...

Maria Correia, claro que se me metesse a essa aventura iria precisar, escrevo muito depressa e com muitos erros. Só uma coisa, o Pita de que falava era outro, o mais novo, baterista. O João encontrei-o mais tarde. Ajudou-me a fazer o vídeo de um espectáculo que estávamos aí a ensaiar nos Olivais, "É para os Putos que Não Querem Comer a Sopa!" (já falei dele aqui). E obrigado eu, Maria Correia.

Anónimo disse...

Xai-Xai, gostaste do post acima? :)

Anónimo disse...

Grande Johny B Good. És cada vez mais um Saramago dos sentimentos (na forma da escrita).
Sempre os outros JB. A tirania dos outros. Há muito tempo que me livrei desses tiranos. Mas não sou actor, nem escritor, nem encho o mundo com essa linda condição, que como todas nos deixam suspensos.
Pois é, as palavras, as frases, os sentimentos, os livros.
Eu não queria a voz de ninguém. Queria uma única boca que fizesse a minha alma elevar-se, e um corpo que me fizesse levitar. Romantismos. Adiante.
Ficamos à espera do teu livro, ou dos teus livros. O que custa é começar. Mas quem sou eu.
Um abraço.

Timor disse...

Leio sim Joao Belo e um dia destes tiro ferias grandes e ponho a escrita em dia. Ha as duas partes: as memorias de crescer nos Olivais, umas partilhadas, outras nao, vizinhas ou conhecidas apenas, mas ha tambem o que nos ficou e nos moldou de ter-mos crescido nos Olivais e isso, para surpresa de uns e prazer de muitos, da-nos uma sensibilidade e um modo de estar e ver que se toca por vezes e que se "reconhece" sem deixar de ser presente.

Beira disse...

"xai xai disse:
JB: os teus textos deviam ser escritos em pautas de música."

Contrata já este tipo como teu publicista!!

bafata disse...

Johnny: Li e fiquei banzado ... reli e.. que queres que te diga ?

No dia em que escreveres um livro, um romance, uns Contos, uma merda de pôrra qualquer, eu vou estar lá e ler-te ... Porquê ? Porque adoro viajar à minha maneira no cabrão do modo fantástico como arrumas as palavras e as fazes serem um dia, uma história, um pedaço de vida que descobriste e soubeste eternizar..

F .... -se tu ESCREVES mesmo rapaz !!