domingo, 11 de novembro de 2007

Noites do Olival


Há dez minutos que estou a olhar esta janela.
Tenho este hábito. Sempre que quero ver para dentro aproximo-me de uma janela, de uma varanda e assim fico, a mirar aquilo que em mim subsiste como imagem. Esta é actual, tirada à dias de casa da minha mãe, mas é quase igual a uma com vinte anos. Era a minha janela preferida para esfumaçar. As milhares de coisas iguais que eu fiz durante, parece-me, milhares de anos. Estas tijoleiras de noite são mais bonitas, parecem até saídas de alguma cidade espanhola, há uma harmonia nelas que se enquadra no desenho da paisagem. No lado esquerdo a escola de Nampula. Como eu gostava de ficar doente e não ir à escola para, do alto do beliche, poder, na sorna, ver os vários jogos de futebol. As vozes no pátio. As vozes a correr no pátio. Eu já conhecia os craques, os pintas da bola. Os fussangas. Aqueles que não faziam nada mas que mandavam no jogo. Era divertido assistir a estes jogos sem árbitro. É falta, é falta!, ouvia-se desde o pátio até à minha janela. Também havia tareia por vezes. Ou, noutras, o filme do jogo parecia que parava, ficava muito silencioso, e eles faziam uma mini-roda onde discutiam um lance, uma jogada. Eu adorava quando alguma professora faltava e, depois de correrem ao som da campainha, retornavam em magote ao pátio para a jogatina.

Todas as casas onde morei, quase todas as casas onde morei, ficavam próximas de um pátio de uma escola. É isso que persiste em mim como imagem. Também nós, no tempo em que os portões ainda não estavam fechados, e se podia franquear com alguma facilidade o muro, passávamos tardes inteiras a jogar à bola no pátio da escola. E por vezes aparecia a ciganada, para acabar com o divertimento. Já aqui se falou nisso.
O ser de noite torna tudo mais claro para mim. As noites de insónia. O levantar-me da cama para escrever. Eu naquela altura levava-me muito a sério. Um dia, tinha uns quinze anos, resolvi escrever a história de um tipo que, tal como eu, tinha vindo da província para a cidade. Peguei no mapa, baixei o dedo, cai numa terra chamada Arneiros, perto de Freixianda. Um rio, o Nabão, ligava estes dois continentes anões. Eu nunca tinha visto o lugar. Que importava? Misturei a aldeia da minha infância com todos os lugares e memórias campestres que conhecia. Era a história de um tipo que vinha para Lisboa com o sonho de se tornar escritor. Em menos de um ano o romance chegou às quatrocentas e quarenta páginas, altura em que uma palavra, fim, pôs termo à saga. A certa altura, talvez por achar muito interessante a vida que eu vivia, repito, eu na altura levava-me muito a sério, o romance tornou-se numa espécie de diário, se fosse hoje, blogue. Depurava o que me acontecia no dia a dia e colocava lá os temas de discussão, a agenda do que nos ocupava. Já não me lembro dos pormenores mas creio que Lisboa não era Lisboa. À imagem dos romances de Somerset Maughan que tanto me empolgavam, Lisboa era Paris. O Martim Moniz uma espécie de Quartier Latin, meio chula, meio operário, meio boémio. Era a súmula dos lugares inexistentes com os lugares feitos de ilusão. Era uma pepineira desgraçada, escrita a tinta permanente, em cadernos escolares de capa azul, meio cartonada, com linhas vermelhas e margem definida. Houve aliás apenas uma pessoa que o leu, o apicultor, aquele que o vazio ilustra. Ele era da minha turma, da do Fula, e com outros dois dedicava-se a uma estranha prática: observação de pássaros. E morava nuns prédios duplex, mesmo atrás da minha casa, pelo que se tornou uma companhia quando vinhamos dos Viveiros. E ganhei-lhe confiança para lhe contar os meus delírios de escrita (eu já disse que naquela altura me levava muito a sério?). Um dia começámos a falar, ele disse-me que escrevia, eu também, decidimos que cada um leria, em frente um do outro, online diríamos hoje, as coisas um do outro. Eu safei-me com quinze páginas de um conto de Natal que depois até reescrevemos a meias, o tipo lá teve de engolir quatrocentas e quarenta páginas comigo a controlar-lhe todas as reacções, todos os trejeitos, gostaste? Entretanto o livro não resistiu aos meus dezoito anos, nessa altura fiz uma fogueira com todas as minhas histórias e deixei que o silêncio tomasse um pouco conta de mim. Ficou-me a imagem. De uma noite, de uma janela aberta, de um apanhar um pouco de ar fresco enquanto a história não avança. De um escrevinhar que, curiosamente, é o que hoje me volta a ligar a esta janela, a este bairro, a este oliversejar.



2ª Imagem roubada no post acima com imagens sobre a génese dos Olivais

12 comentários:

cláudia santos silva disse...

é com a abertura de janelas assim que sabe bem começar a semana.

Anónimo disse...

De facto, nos Olivais escolas há muitas.
Andei 3 anos na Damião de Gois, e adorei.
Foi a minha primeira experiência de liberdade, considerando que antes tinha estado num Colégio pequeno (da 1ª á 4ª classe).
Lembro-me de correr sem nexo, por entre os pavilhões das salas de aulas. De comer donuts no bar da escola. Das meninas a saltar à corda e ao elástico.
Do 25 de Abrl e do 11 de Março.
Do meu primeiro chumbo, ehehehe.
Dos jogos de futebol, no campo que ladeava o pavilhão, e que era ligeiramente inclinado.
De saltar pelas janelas das salas de aula (depois da abrilada, como alguns lhe chamam).
As paixões vieram depois, já na escola da Piscina e nos Viveiros.

Mamadu

Anónimo disse...

Assassino .... recupera aquela história queimada, reinventa-a se quiseres e .... manda-me por mail. Se for o unico leitor, pago a edição em avanço !!! No fim, retiro o epiteto com que te mimo no inicio !! Ouviste João Belo??

joão belo disse...

mamadu, se andavas na damião de góis nessa altura fomos colegas de escola...lembras-te daquele director muito severo que antes do 25 de Abril fazia sair os alunos com um tareómetro e que depois do 25 de abril nos concedeu um dia para ir ver o spinola (que nós utilizámos a jogar á bola no campo em frente) e que até achou banal a manifestação que fizémos a pedir semana inglesa e outros disparates do género? abraço

joão belo disse...

bafas, não posso mesmo e aquilo era ilegível, lol. achas que dá para substituir isso por pensamentos saídos em bolinhos da sorte chineses? tenho aqui uns tantos...:)

Anónimo disse...

Pois é João Belo, mas aqui somos todos Teresos.
Não me lembro do Director da Escola, nem da história do Spinola.
João Belo: Nessa altura nem sabia o que era política. Só me lembro da capa do Expresso, com a fotografia de um tanque na Rua do Carmo (salvo erro).
Como te disse, a Escola Damião de Gois foi para mim uma escola de liberdade pessoal e não política.
Mas se calhar conhecemo-nos, porque não havia canto naquela escola que desconhecesse. E está tão diferente...
Mas manda lembranças desses tempos.
Um abraço,
Mamadu

xai xai disse...

isto é extraordinário... se esta vista é do 5º andar Dir. onde moravas, devo dizer que do meu 6º Esq. (uns metros mais acima e à direita)a vista era MUITO diferente. pode parecer estranho mas, aparentemente diminuta, a diferença era suficiente para eu ver a pista do aeroporto e o movimento dos aviões. para mim esta pode ser a paisagem da minha vida pois o meu quarto tinha este "olhar" que foi meu dos 10 aos 29 anos.

Vila Pery disse...

João Belo: Adorei, não me importo que me contes também os teus delírios, da escrita, claro! Danças bem, escreves bem, hummm... a minha amiga teve sorte em te roubar aquela dança (lol)!!

joão belo disse...

agora que o dizes lembrei-me sim da vista do teu quarto. não te parece estranho como é que as nossas vidas couberam naqueles espaços, lol? eheheheh! agora lembrei-me de uma mulher com um nome de mineral...lol...Urânea! eu era tratado como um fidalgote na tua casa, lol!

Anónimo disse...

Tens razão, Bafatá, foi uma heresia a queima desse testemunho. A avaliar pela pessoa que és hoje, posso imaginar que pérolas seriam essas 400 páginas, João Belo... Urge reinventá-las!

Rua Cidade de Inhambane disse...

De facto escreves muito bem Joao Belo...fazes me lemmbrar certa pessoa... se calhar até és...

joão belo disse...

inhambane, sabes bem quem eu sou. mas vamos manter as regras aqui do Olival. tem mais piada, eheheh! beijo