é um daqueles dias em que me apetece existir para lá do horário normal desta vida quotidiana e a minha vida quotidiana é isto: abro a loja por volta das nove, meio estremunhado, a dizer disparates, gosto de começar o dia a dizer disparates, a falar uma linguagem inventada, a rir de olhos fechados, a fingir o fingimento e fecho-a cerca da uma e meia duas, às vezes três. e este recostanço no prazer que a vida é atira-me quase sempre para os olivais. imagino tardes esticadas nos cafés. uma sensação de lanzeira, de não fazer nada, de inutilidade. do prazer de arrastar o corpo entre as sombras do escasso arvoredo, é maio e lembro-me sempre de um maio solarengo, trengo, em podendo ser feliz. o que mais gostei dos anos oitenta foi esta sensação de que a vida é um passeio pelas horas de uma tarde, seja ela qual for. de que o tempo é meu, de que o tempo é nosso. quase nunca o é. por esse país fora ou adentro abre os olhos e vê, quase nunca o tempo é nosso. e isso vê-se logo pelo modo como vivemos. vivemos à semana, a maior parte de nós. temos as semanas dentro de meses e os meses têm um ano, um ano de cada vez, com subsídio de férias, mês de férias e subsídio de natal. mas vivemos à semana. cinco dias, cinco, para o patrão, dois para a família, os amigos, e, em sobrando, para uma réstea de gente que ainda nos habita. há variações, claro. alguns têm mais dias, outros menos. mas a gente vai por aí fora, tenta marcar um almoço ou um jantar de amigos e percebe que assim é, que assim quase sempre é. e assim é também globalmente. mais fuso menos fuso, o sábado é sábado em lisboa e em nova iorque, em pequim ou em bratislava, assim como o domingo o será no rio, na cidade do cabo ou em xai-xai. não somos contemporâneos, o mito da contemporaneidade já se fugiu como as areias da praia de são joão da caparica, uns de nós vivem no século XX, outros no XXI, outros no séc. XII, mas vivemos à escala global o mesmo sábado, o mesmo domingo, é uma proeza ideológica, um mundo que explode de diferenciação aguenta-se há alguns milénios a coabitar o mesmo calendário semanal. nunca ninguém me soube explicar muito bem porque é que isso acontece. e eu, quando comecei a abdicar das respostas alheias também não as encontrei por mim. quero dizer, há as respostas clássicas: a religião, os negócios. mas isso é ainda pouco. ou é pouco agora. tenho o corpo em festa. festa dos sentidos, o cheiro, este l'eau d' issey miyake que vem sempre em maio, a minha mãe pergunta-me, o que é que vais querer desta vez?, o mesmo que pelo natal, respondo, e assim é, há anos, gosto de colocar perfume em excesso, coloco-o para mim, sou o primeiro espectador do meu cheiro, festa dos sentidos, este ruído dos carros no tapete da rua da misericórida lembra-me o mar, depois as vozes dos colegas parecem-me as conversas das vizinhas, gosto de sentir que há gente à minha volta, até o silvado lento e tímido do computador se me assemelha ao chilrear dos campos alentejanos que ainda me zurze na cabeça, olho para o azul do céu e lembro-me do azul nas tardes do vale do silêncio, um dia, estava já nas aulas do josé manuel costa na nova, fui fazer de frederick eiseman para o vale do silêncio, horas e horas de cassete para trinta minutos de documentário. talvez um dia consiga trazer isso para aqui, é uma questão de formato, de formatação. é quase verão. apetece-me ir a jogo. poderia ter escrito e tê-lo-ía escrito com a mesma sinceridade, com a mesma autenticidade,
estou farto de ir a jogo, mas escrevi,
apetece-me ir a jogo. escrevi e inscrevi-me. ir a jogo numa tarde assim. já não apenas os olivais, a bucólica imagem dos olivais dentro dos cornos. este prazer hereje, sacripantas, é um pouco maior que um bairro, que uma cidade, até que um país. é o meu pequeno mundo.