tenho memória de actor. quer dizer, não me lembro de quase nada e depois, lembro-me de tudo. ficou-me dos tempos do palco, essa memória assim, por ressonâncias. às vezes ando pela vida meio perdido a pensar que chegou a minha hora do esquecimento - lembro-me sempre do manuel joão gomes, enciclopédia viva dos seus colegas no Público e que acabou os seus dias enterrado no buraco negro do tempo sem avanço nem recuo - e depois embato em qualquer coisa e desatrelo um fio que vai buscar histórias sem fim ao que somos, fomos. quando começou a olivesaria, achei-a uma benção. tinha na altura um projecto de escrita: "Nós nas paredes", narrativa sobre os nossos quarenta anos. digo nossos, os meus, os da malta que andava na casa do Pedro Queirós, ali na Praceta Aleixo Corte Real, onde podiamos escrever nas paredes (e onde, de tudo isso, só resta aquela pintura no corredor que o Pedro Sá fez num verão de não sei quantos). onde podíamos fazer tudo, de tudo, dizer poesia, fazer concertos, teatro, sex, drugs and pouco rock em roll, mais sinfónico, pink floyd, génesis, por aí, éramos muitos. na altura não nos distribuíamos como aqui, por ruas, se fosse a inhambane ganhava: os alpis, tozé, pedro e joão, o pedro, irmão da nossa inhanbane. Mas éramos muitos, o abilio, rosinha, o buracos, o pitagroz, a cristina, a xana, a ana paula. As noites com o teatro das belas artes, aquela casa, já falei dela aqui, hei-de falar dela muito mais vezes. hei-de falar dela até ao meu silêncio. Foi lá que conheci o Pepe Blanco, que antes de se suicidar de vez me falou com enlevo da sua ritinha que estudava em Londres e que quando viesse iria dar que falar, atão senão deu Pepe, por esse lado dormirás o sono dos justos, ou o Rogério de Carvalho, encenador que se afundava no sofá da sala quando eu e o Pedro Alpiarça entravámos vindos de representar o nosso espectáculozinho no Marítimo de Xabregas e ele, embasbacado porque nós éramos actores, e que bom, e isto e aquilo, era um negro baixinho a enfiar-se por dentro do sofá, e eu a perguntar-lhe, também gostas de teatro,
sim, mas estás ligado, encolheu os ombros, como é que te chamas, perguntei,
Rogério, Rogério de Carvalho, sacana, tu és o grande Rogério de Carvalho, dei-lhe um texto meu, a minha primeira peça de teatro, gestalma, um mês depois sempre que o encontrava apresentava-me aos seus amigos - entre os quais o malogrado Luís Figueiredo Tomé no Teatro do Século, falo do Luís porque era daqui, dos nossos Olivais - dizia,
é autor, o sacana do Rogério, tive a sorte em trabalhar com ele em 98, um espectáculo para o primeiro estágio internacional de actores lusófonos, em tetum, crioulo, português, sem acordo ortográfico, fronteira, nascidos de dois ateliers, um de escrita e outro de representação, eu dirigi o primeiro, o Rogério o segundo, dez anos depois, há meia dúzia de dias, telefona-me um dos actores, agora senhor director do Festival de Teatro de Piáui, a convidar-me para ir lá em agosto repetir o trabalho com o Rogério, são destas coisas que me lembro quando me esqueço de tudo, a minha vida nunca teve sentido de outro modo, tem-no quando se espelha nos olhos dos outros, é isso que o teatro, o cabrão do teatro, me ensinou, estamos sempre, desde o nascer ao deitar, e uma vida é assim breve como um dia de vinte e quatro horas, diante do olhar dos outros, somos à vez espectadores e actores, devemos por isso trabalhar a forma como olhamos o mundo, olhar é agir, se eu tivesse um slogan seria esse, olhar era agir naquela casa onde escrevíamos nas paredes, eu já não sei o que é a nossa vida agora, uns de nós progrediram nos negócios, outros no comércio por atacado, a retalho, outros nas letras, nas artes, nas humanidades, nas ciências, nas leis, houve os que morreram, lembro-me do joão que se atirou dum prédio ao pé da gilauto, o irmão dele, o Pedro tinha sido meu colega da Comuna, o Nuno, a Teté, atropelada ao pé dos Jerónimos, dia de luto nos Viveiros, há uns de nós que se foderam, lixaram-se, por vezes penso que não, a moral dos aflitos, dos contritos, dos vencidos, depende de quem escreve a história, do lado em que sopra o vento, o que interessa, a única coisa que interessa nesta puta de moral moralista com que vou definhando o espírito é saber que estamos vivos e a partilhar este mistério de não sabermos porque é que ainda nos aguentamos, porque é que ainda estamos vivos, porquê nós e não os outros, e tudo isto porque comecei a falar da morte, a gente escreve, a gente escreve-se mas quando chega à D. Morte já não somos nós que falamos, que escrevemos, é qualquer coisa que temos dentro de nós, fora de nós, tem de ser qualquer coisa magnética, que nos puxa, que nos atrai, a verdade é que já nem eu sei onde este texto está, está sol, a luz bate-me no écran, não vejo as palavras, não conduzo mas deve ser a mesma sensação que se tem quando se vai na estrada ao fim do dia e aquela luz assassina nos cega, aqui é a mesma coisa, embalei, meti a quarta e agora deixo-me ir, as palavras, a puta das palavras que andam sempre à nossa volta, como dizia o Kitos, quer dizer, o Mamadu, são como moscas, as palavras, para um analfabeto as palavras têm uma existência física, são objectos, somas de letras, objectos mais pequenos, têm formas, densidades, às vezes devíamos encomendar a leitura das nossas palavras aos leitores analfabetos, na sua virgindade diriam coisas surpreendentes sobre aquilo que escrevemos, cada letra seria uma pequena escultura, eu sei, já me perdi, mas há muito que só o mais desatento ainda lê esta canzoada, soltei os cães, gosto desta ideia de que a escrita é soltar os cães no mato que somos nós, vou a ver se me recupero, sem ir lá atrás, não quero, tem de haver alguma rebeldia nisto, porra!, uma vez por causa de um porra ofereceram-me um emprego, eu tenho histórias assim, inadvertidas, tenho e não tenho, tenho e fogem-me, estão dentro de mim mas eu não sei onde, foi por isso que quando me convidaram para escrever na olivesaria eu achei ainda bem, estes gajos vão escrever as suas histórias e eu vou vampirizar tudo isto e escrever um romance, dois, três, não foi isto que até agora aconteceu, ou se o for está a acontecer mais devagar, eu gosto quando as coisas acontecem mais devagar do que quando as tenho na minha cabeça, o que está a acontecer é, como diz o Beira,
há coisas que sim outras que não, leio as imagens, os bonecos, com a mesma generosidade com que sei que vou ser lido,não sei o que resulta disto, sei que me sinto bem, sinto-me em casa, sinto-me em casa numa casa maior, não são as pessoas do passado, com a maioria das quais não tive realmente grandes coisas para lembrar, são as pessoas do presente, meio gente meio avatares, gosto de imaginar que a Timor me lê em Londres, quase não a conheço, ela não é ela, é as imagens que me suportam, vocês hão-de achar isto pimba mas sempre que leio o nome dela ouço-o através da voz do luís represas, adoro aquela voz, se um dia me aparecesse um duende eu não pediria resmas de gajas, barris de petróleo ou lingotes de ouro, como pensava que seria assim se alguma vez me deparasse com a lâmpada de aladino, pediria para por um minuto que fosse ter a voz do luís represas, os nossos nicks somos nós, os nossos nicks somos nós de outro modo, Bolama, Fulacunda, Xai Xai, Beira, A rapariga que veio da província, estes nomes ressoam-me, lembro-me de coisas que nunca existiram, que ainda hão-de existir, sabe-me bem a vida assim, tão longe da literatura, tão perto da vida, não sei porquê agora associo automaticamente o Fula a um Jantarinho de Feijão Branco, a um delicioso jantarinho de feijão branco, gosto de cozinhar, tenho as ementas no Benguela todas no desktop, desde que o vi com pose séria no fogão da Quinta da Abóbada disse, vou atrás dele que vou bem - até com o próprio Xai Xai de quem me lembro de tantas coisas e com quem a memória tem um à vontade que não tem com outras pessoas é mais o prazer de estarmos juntos e vivos e ao mesmo tempo do que a memória deste ou aquele feito - não vou escrever o romance, merda, nunca escreverei a puta de um romance, vou ficar por aqui,
escritor de posts, eu dizia que o meu pai era filósofo porque se tinha formado em filosofia, o meu puto vai ter de encher o orgulho quando disser:
o meu pai escreve posts, estamos sempre, estamos sempre diante do olhar dos outros, é o que vos digo com a minha alma de actor, um tipo não deixa de o ser nunca, em vida, de representar papéis, um papel, digo, digo-vos, estamos sempre, sempre diante do olhar dos outros. é uma condição.