segunda-feira, 28 de abril de 2008
quinta-feira, 24 de abril de 2008
Memórias de um período revolucionário (1978)
(Amanhã não estou por ‘cá’ pois devo-me a um compromisso gastronómico de 3 dias, e hoje pouco estou já que me (re)parto pelos afazeres da profissão, por isso peço que me desculpem de comemorar o 25 de Abril a repetir-me com texto nada novo repescado daqui … mas não queria deixá-lo sem nada. Até porque, seguramente, seja de que lado o olhemos, o 25 de Abril fará sempre parte das memórias dos Olivais. E já agora, destas fará parte o Chico, meu inseparável companheiro de infância.)
Não que eu fosse do outro lado, que nem podia com esses outros de samarras e sapato afunilado. Basicamente era do contra, embora naquela altura quem fosse do contra fosse obrigatoriamente dos outros. Mas eu nunca fui, nunca fui de nenhum, o que era uma forma de ser um bocadinho de todos. E por ali andava nas meias águas liberais, disponível assim para ganhar uns cobres a colar cartazes de diferentes cores, que nisso também havia ideologia, pelo menos para um miúdo de 15 anos. Mas daqueles não gostava, achava-os bárbaros.
Desde o tempo do Pinheiro de Azevedo a gritar “O Povo é sereno. O povo é sereno”. E a turba louca em direcção à rua augusta, pouco importada com o que ele dizia, com o que ele dissera, com as ovações que lhe dedicara antes, e depois a voltar em cavalgada, a fugir dos gases lacrimogéneos que a barravam lá do lado norte. “O Povo é sereno, o Povo é sereno”, e naquela catadupa a caírem, espezinhados, perdidos uns dos outros, agora todos em trote na direcção do rio, e ali sereno só o meu pai abrigando-nos aos dois junto da estátua do D. José, que “isto já passa, fiquem aqui perto de mim”. E a multidão a trocar o passo, que dos lados do rio são agora os disparos da G3 da COPCON, e eles em magote a retrocederem, e o baque inevitável dos que ainda iam com os que já voltavam, e o Pinheiro de Azevedo a continuar “O Povo é sereno, o povo é sereno”. Foi por aí que deixei de gostar deles.
E depois foi lá por Chelas também, lá onde se construía um bairro novo e para onde nós partíamos a fazer passar a tarde. Era a fase da expropriação das casas, e todos os dias mais um novo episódio, quase sempre o mesmo, que seguíamos com um voyeurismo cinematográfico. O “fascista, fascista”, e este a fugir, esgazeado e aos tropeções “no ai acudam-me que sou pai de família”, de cabeça a sangrar e a cara distorcida do pânico enquanto se finca ao varão do autocarro de porta atrás. E o povo impaciente, que o fascista partiu e deixou ficar "tudo que agora é nosso", e agora guerreando-se já pelo condomínio a ocupar, e o militante da LCI(?), a tentar arbitrar, que “camaradas, há-de chegar para todos, não sejamos como eles”, e depois a recuar hesitante, com a reacção daquela gente, que tão logo se tentava o tirar-lhes da habitação que ainda agora lhes tinha sido devida da acção do povo. E de vez a vez a tropa, chaimites, uns tiros de G3 para o ar, rapazes de bochechas coradas, aquietados, apenas a fazerem-se notar, a subir o queixo para aquela gente toda, não pelas razões que travavam, mas apenas pelo fulgor da juventude. E as mocitas a acercarem-se deles, se podiam subir, “suba menina, suba, e então também vai ficar a viver por aqui?”. E a multidão a virar-se de súbito para os lados do rio que parece que por ali anda outro, “fascistas, fascistas, a construírem andares com o dinheiro do povo”, e já mais famílias a perguntarem onde, agora sem o militante da LCI que afinal também não era flor que se cheirasse. E eu não gostava daquela mole de razões, bruta, exaltada, ladroeira.
Era contra, mas não era dos outros. O Chico era, eu era apenas do contra. E a pintura do Lenine, enorme, ali todos os dias a ocupar a fachada do prédio dos professores, a rir para nós com a careca minuciosamente pintada de reflexos luzidios, e hoje, assim noite escura, e a lata de tinta que até nos lembrámos haver em casa dele. E agora a fugir pela azinhaga, e aquele tipo barbudo e enorme, “mas como pode um gordo destes correr assim tanto”, mas nós sendo dois e quase gémeos nos instintos de tanta malandrice a fazer-nos cada um derivar para o seu lado. Foi ao Chico, que só podia apanhar um. E depois aquela gente toda enrubescida, a gritarem-lhe “puto de um cabrão, fascista de merda, ficas aí até isso sair tudo”. E ele lá no cima das escadas a limpar o enorme borrão branco com a sua própria camisa, de tronco nu vergado de vergonha, minúsculo na gritaria daquele bando enraivecido, e um deles, mais perto de mim, estranhando e a interrogar-me “e tu puto, porque estás a chorar, é teu amigo não?” e eu mudo, apenas esperando que o Chico descesse, pouco me importando já com eles, com a revolução e com o careca pintado na parede. E depois os dois a voltarmos para a rua, já sem Lenine, emudecidos, a darmos as costas ao tempo, ansiando para que a distância se fizesse, até crescermos e eles envelhecerem e por lá (naquele dia) ficarem, até a revolução voltar a ser outra vez uma coisa boa.
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amizades,
tardes mornas e noites agitadas
quarta-feira, 23 de abril de 2008
Objectores de Consciência
Desfilando na Avenida da Liberdade, algures em 81. Falta aqui o Apicultor, de um pequeno grupo de objectores e objectoras de consciência dos Olivais. Apresentámos praça no DRM de Setúbal. Na altura temia-se o pior. Aliás, na altura, agitava-se o papão do pior para que a objecção ficasse o mais possível circunscrita a algumas confissões religiosas.
Freak, o nosso cão
A Timor falou no nosso cão, a propósito do Freak. O Bolama disse que era o seu cão. O Benguela, a Timor e o Bolama salvaram-no do canil municipal. Nós fizémos um dia uma semana de greve ao Tó por causa dos pontapés com que um empregado do café o brindara. E traziamos-lhe restos. Devia tê-lo registado de outra forma, com mais dignidade, afinal vinte e tal anos depois vimos a descobrir que ele, o nosso Freak, como um fio invisível, nos ligava.
terça-feira, 22 de abril de 2008
segunda-feira, 21 de abril de 2008
Conta-me como foi
domingo, 20 de abril de 2008
Tardes em Monserrate
Há já alguns tempos que alguém falou dos passeios a Monserrate. Na altura disse que tinha algumas imagens de um dos muitos passeios que demos a Sintra. A máquina era muito má e só mesmo o desejo de reconstruir a memória oculta para lá dos pixels me leva a trazer estas fotos. Estaríamos em 82. Íamos no combóio até ao fim da linha e depois fazíamos aqueles três quilómetros a pé. Chegados lá abancávamos na relva enquanto se enrolavam charros, uns atrás dos outros. Cada vez era menor o tempo entre charros. Eu não fumava, era o careta de serviço, lá me disfarçava de Óbelix e desculpava-me dizendo que tinha caído na panela do haxixe quando era puto. As pessoas aceitavam-me bem nesta escusa. Não era o único. Havia um outro, que como eu tinha ressacado mal e que desde aí nunca mais se ganzara. Eu gostava de ver o grupo quando o haxixe começava a fazer efeito. Os risos incontrolados, os olhares etéreos, aquela vontade de se evadirem. Para mim eles eram o meu pequeno grupo de aventuras onde podia ser o observador que sempre fui. Via-lhes os romances, à séria, já tinhamos vinte anos abertos, abriamos o sexo como quem abre uma flor, experimentávamos ainda os limites do corpo, do uso. Lembro-me que naquele ano de 1982 eu estava cansado como se tivesse vindo de uma pequena guerra. E talvez tivesse vindo mesmo de uma batalha. Que começara no final de 1980. Quando corria, no fim antecipado das aulas nos Viveiros para apanhar o 21 e depois o metro até Palhavã, onde entrava no universo mágico daquela sala cor de rosa na Comuna. Até às cinco, seis da manhã em que, encostados às escadarias do Metro, eu, a Ana e o Pedro, esperávamos a abertura de portas para voltar para casa. Eu ía para a escola sem dormir. Estava de facto a passar por uma guerra, por uma viagem que me marcou para sempre, rodeado de gente, poetas, cantores, actrizes, intelectuais e políticos que estavam ali tão próximos daquele meu olhar embasbacado, provinciano. Foi assim que eu aterrei neste grupo do café do Tó. Eram tempos difíceis, ou pelo menos, na facilidade que tinham sido as nossas vidas anteriores, eram tempos em que não havia grande futuro. O futuro era estarmos ali - um pouco como na história da nêspera do Mário Henrique Leiria - à espera do que nos pudesse acontecer. Arranjávamos biscates, eu trabalhava na loja de fotocópias do meu primo ou nos Correios, havia mais como eu nos Correios, era o tempo dos contratos a prazo para provir falhas nos tempos de verão, era aliás o glorioso tempo dos contratos a prazo, dos salários em atraso. No fim dos contratos dos correios íamos seis meses para o desemprego. A ideia era tentarmos ganhar uns patacos para podermos gastar no dia-a-dia, ali, encostados ao muro, sentados nos cafés do Tó e do Cheira Mal . Ou para comprarmos uns discos. Para irmos à Aula Magna quando não conseguiamos entrar à borla. Foi lá que vi a Juliete Greco, o José Mário Branco. Talvez também o Leo Ferré. Ou o Fausto. Não sei. Sei que o tempo era interminável. Quer dizer, nunca mais acabava. Ficávamos ali horas a olhar uns para os outros, a dar pontapés no ar, a dizermos bojardas. Ou então naquela casa da Praceta Aleixo Corte Real que era a nossa verdadeira casa. Não foi muito tempo que isto durou mas tenho sempre a sensação de que foi demasiado tempo. Felizmente nesses tempos as idas a Monserrate, ou os acampamentos na passagem do ano no Guincho, eram pequenas aventuras onde por momentos eu sentia que aconteciamos.
quinta-feira, 17 de abril de 2008
Tardes de chuva
Por alguma razão que não percebo quando chove tenho a tendência para me fechar em mim. Apetece-me nessa altura fazer chá e comer bolachas com manteiga. Desço ali à Rua do Norte, a uma mercearia onde me costumo aviar destes meus pequenos apetites. E quando subo as grandes escadarias deste velho teatro começo a sentir que é em tardes como esta que me agrada (poder) escrever na Olivesaria. Tenho um ou dois projectos na minha cabeça, coisas a que me quero dedicar mas sei, isso é para os dias de sol. Tenho ainda as calças ligeiramente molhadas e esse pequeno toque de água dá-me uma sensação de desconforto confortável, como se as minhas divagações tivessem um corpo físico a que se pudessem agarrar neste naufrágio que parece ser pensar, lembrar. E ao mesmo tempo tardes como esta sempre me deram vontade de ficar sozinho, de me ligar pelos olhos atrás da vidraça, ao movimento de lá de fora, de ver quem se arriscava a atravessar a rua durante uma chuva, e o frio de lá de fora no corpo do outro a aquecer-me o meu, e o vento a fazer dançar os corpos, a levantar pequenos objectos, uma dança, um bailado de partículas e de pequenos seres em arrevoada. E eu cá dentro de casa a ocupar-me, e ao meu espírito, com outras danças. Os discos a tocar na sala. Gostava de ouvir Amália, ela no café do Luso, era o disco preferido do meu pai. Eu dantes pensava que tinha um fado dentro de mim. Gostava de o cantar como nunca soube cantar nada. Deixei de o ter dentro de mim aos poucos. Aliás, eu hoje já não sei tão distintamente o que é o lado de dentro e o lado de fora das coisas minhas. Antes eu era capaz de dizer sem estremecer a voz: dentro de mim tenho uma vontade de. Não interessava o que fosse, se coisa espiritual ou física. Podia ser uma vontade de amoras bravas, de azedas frescas, de relva verde, ou até, de um ramo de árvore para chicotear o ar, fustigando-o antes que ele me consumisse a mim. Eu dizia sem tropeções nem solavancos, dentro de mim. Agora soa-me a estranho. Não conheço o que é dentro/fora de mim. Sei que o meu corpo, como se fosse uma caixa, guarda uma química de cujas improbalidades me ocupo anualmente, quando vou saber do estado da arte. De dentro do meu corpo saiem então sangue e fluídos que, depois de analisados, dizem um pouco sobre o modo como se vive na minha cavidade interior. Mas não me atrevo a dizer que aquilo que penso está dentro de mim. Os meus pensamentos, aqueles de que gosto mais, estão até particularmente fora, em conexão com tudo o que existe. Como se dançassem. Eu não sou apenas este cada vez mais velho corpo físico cuja materialidade reprova um cada vez maior número de façanhas. Ou que tornará, dia após dia, os mais pequenos gestos quotidianos numa façanha, um singular heroísmo. Eu sou tudo aquilo que sou/fui capaz de integrar através da minha percepção. E se já tenho alguma dificuldade de negociar satisfatoriamente a minha compreensão do mundo através das categorias da realidade/irrealidade, com a de dentro e fora parece-me uma missão impossível. Era assim, com divagações que eu me entretinha do lado de cá da vidraça, olhando a água a correr pelo campo de futebol da escola de Nampula. Às vezes havia uns mais afoitos que independentemente da água resistiam e continuavam a jogar. Eu admirava-os, como se fossem os craques dos cromos da minha caderneta. Era como se estivessem ali apenas para me entreter, para não me deixarem naufragar no lado de dentro da sala. Ainda estou a vê-los hoje e já passaram mais de trinta anos. Estão ensopados em água, quando tropeçam sujam-se todos. Quase que, no conforto da minha sala, consigo sentir o desconforto e o prazer da água a escorrer pelo cabelo, pelo rosto. Depois, a chuva há-de passar e começam a chegar os outros, os prudentes. Eu levanto-me. Desligo a televisão que é este meu real encostado à vidraça e vou brincar, talvez atrás do tesouro do arco-íris.
5 a 3
Março de 1974.
Tinha ido viver para os Olivais há um mês.
E nesse domingo havia futebol no estádio de Alvalade. Mais um Sporting-Benfica.
Nesse ano fui muitas vezes ao futebol com o meu tio.
Foi-me buscar a casa e depois fomos de carro pela 2ª circular que estava cheia de trânsito e com carros estacionados por todo o lado. Acho que estacionámos mais perto dos Olivais do que do estádio.
Foi uma tarde memorável. Um bom jogo de futebol. Bem disputado e com as duas equipas a lutarem pela vitória.
No regresso a casa ia satisfeito pois tinha valido a pena ir ver aquele jogo. Fossem assim todos os jogos.
(foto de JOS, in "Futebol 74")
Ganhou o Benfica por 5-3.
Foi o último Sporting-Benfica que vi ao vivo. Nunca consegui ver ao vivo o Sporting ganhar ao seu eterno rival.
Ontem a mesma sensação. Desta vez foi a minha equipa a ganhar, mas teria ficado igualmente satisfeito se o resultado fosse ao contrário.
Tal como há 34 anos atrás o que fica é a memória de um grande jogo de futebol, com grandes golos e emocionante até ao fim.
Como o futebol devia ser sempre.
Tinha ido viver para os Olivais há um mês.
E nesse domingo havia futebol no estádio de Alvalade. Mais um Sporting-Benfica.
Nesse ano fui muitas vezes ao futebol com o meu tio.
Foi-me buscar a casa e depois fomos de carro pela 2ª circular que estava cheia de trânsito e com carros estacionados por todo o lado. Acho que estacionámos mais perto dos Olivais do que do estádio.
Foi uma tarde memorável. Um bom jogo de futebol. Bem disputado e com as duas equipas a lutarem pela vitória.
No regresso a casa ia satisfeito pois tinha valido a pena ir ver aquele jogo. Fossem assim todos os jogos.
(foto de JOS, in "Futebol 74")
Ganhou o Benfica por 5-3.
Foi o último Sporting-Benfica que vi ao vivo. Nunca consegui ver ao vivo o Sporting ganhar ao seu eterno rival.
Ontem a mesma sensação. Desta vez foi a minha equipa a ganhar, mas teria ficado igualmente satisfeito se o resultado fosse ao contrário.
Tal como há 34 anos atrás o que fica é a memória de um grande jogo de futebol, com grandes golos e emocionante até ao fim.
Como o futebol devia ser sempre.
terça-feira, 15 de abril de 2008
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Yako
Yako quer dizer “vem cá” num dialecto guineense que desconheço. Era o nome do um pastor alemão, nascido e ‘baptizado’ por lá e chegado aquela família já adulto. Enorme, vivia vítima desse gigantismo, essa deformidade de força que o tornava incontrolável e que, não obstante os seus uivos lamentosos, o mantinha eterno prisioneiro das cercanias da casa. Nenhum dos 6 miúdos que por lá viviam - a não ser que por castigo - se arriscava a passear tal fera. E nisso não se receava o esforço ou mesmo a impotência em o dominar, mas sim as sequelas sobre tudo o que mexesse na vida pública e das quais se faria cúmplice quem se aventurasse a passeá-lo.
Um dia, porém, faz muito tempo, um dos miúdos arriscou prender-lhe uma trela, abrir o portão e de súbito, aos tropeções, fez-se desaparecido no horizonte. Desde então, algo inexplicavelmente, teimava em fazer-se largado todos os dias a reboque da fera para depois voltar quase desfalecido, por vezes mais de uma hora depois. Malgrado o desgaste em roupa e solas comentava-se naquele lar o sentimento generoso que esse seu gesto de compaixão, guiado por uma férrea obstinação, revelava. Era tal o reconhecimento familiar que com naturalidade se foi vendo dispensado das lides da mesa e da louça na máquina e até, confesse-se, alvo de algum amolecimento nos rigores da disciplina que, em bom haver, deveria dividir com os seus tantos irmãos. Mas a verdade é que vendo-o partir assim todos os dias, tenso e de faces geladas do pânico por um destino desconhecido, ninguém se aventurava a argumentar favores ou a trocar compromissos com ele.
Dia após dia o Yako foi assim conhecendo o mundo e foram tantos os dias em que assim seguiram os dois, que nessa rotina acabou amansando. O miúdo foi gastando cada vez menos solas e o seu amor pelo animal foi sendo também cada vez menos valorizado. Quando a fúria do bicho por fim sossegou e passou da condição de tractor a conduzido, a condição humana do jovem começou a destacar-se sobre a mera natureza animal do canídeo. Os dias passaram e nesses passeios cozinhou-se até algum companheirismo, aliás, aprofundado desde o momento em que os dois passaram a concordar mais democraticamente nos desenhos deambulantes com que os seus trajectos riscavam o bairro inteiro.
Chegou então o dia em que o miúdo ganhou a certeza de que seria capaz de treinar a fera para, mais do que a fazer mansa, fazer da sua mansidão parecer a antiga fúria indomada. E a diferença entre o inverno em que começara por ser rebocado por um animal impetuoso e descontrolado até à primavera em que agora o via amansado residia não no ar feroz, antes genuíno e agora dissimulado, mas mais na possibilidade de agora ser ele a traçar caminhos e a definir destinos. E nisso residia toda a diferença. Uma diferença tão fundamental que se alguma vez pensasse que jamais a conseguiria alcançar nunca o infeliz animal teria conhecido mais do que o lado de dentro dos muros do seu jardim.
Desde esse dia era vê-lo então correr ladeiro abaixo, estimulando o companheiro para ostentar as suas garras e tensar a trela com esforço ensaiado, e assim se acercarem os dois da da varanda dela, bravos, e de seguida mergulharem por entre o túnel que esburacava a fileira de prédios para logo depois aparecerem do outro lado, sempre em passo valente, ele olhando de soslaio uma acidental aparição da miúda loura. E foram tantas as vezes que um dia ela lhe apareceu, e apareceu-lhe tantas vezes depois que, apesar da sua quase crónica timidez, acabou por a conhecer. Finalmente.
Há coisas que não importa explicar, muito menos naquela idade, se de paixões falarmos. O certo é que aquela afinidade que tanto lhe custara fazer acontecer sob uma chama platónica acabou por não se transformar em amor e, sem que desse por isso, nasceu ‘apenas’ uma sólida amizade. Naturalmente, terá deixado de precisar de continuar a passear o Yako por baixo da varanda ou junto ao túnel. Depois o Yako envelheceu e também ele deixou de ter motivos para o rebocar enfurecido pelos trilhos dos Olivais. Mais tempo passou, o Yako acabou por morrer e outras duas gerações de cães ainda lhe sucederam, perdurando a sua graça.
Um dia, porém, faz muito tempo, um dos miúdos arriscou prender-lhe uma trela, abrir o portão e de súbito, aos tropeções, fez-se desaparecido no horizonte. Desde então, algo inexplicavelmente, teimava em fazer-se largado todos os dias a reboque da fera para depois voltar quase desfalecido, por vezes mais de uma hora depois. Malgrado o desgaste em roupa e solas comentava-se naquele lar o sentimento generoso que esse seu gesto de compaixão, guiado por uma férrea obstinação, revelava. Era tal o reconhecimento familiar que com naturalidade se foi vendo dispensado das lides da mesa e da louça na máquina e até, confesse-se, alvo de algum amolecimento nos rigores da disciplina que, em bom haver, deveria dividir com os seus tantos irmãos. Mas a verdade é que vendo-o partir assim todos os dias, tenso e de faces geladas do pânico por um destino desconhecido, ninguém se aventurava a argumentar favores ou a trocar compromissos com ele.
Dia após dia o Yako foi assim conhecendo o mundo e foram tantos os dias em que assim seguiram os dois, que nessa rotina acabou amansando. O miúdo foi gastando cada vez menos solas e o seu amor pelo animal foi sendo também cada vez menos valorizado. Quando a fúria do bicho por fim sossegou e passou da condição de tractor a conduzido, a condição humana do jovem começou a destacar-se sobre a mera natureza animal do canídeo. Os dias passaram e nesses passeios cozinhou-se até algum companheirismo, aliás, aprofundado desde o momento em que os dois passaram a concordar mais democraticamente nos desenhos deambulantes com que os seus trajectos riscavam o bairro inteiro.
Chegou então o dia em que o miúdo ganhou a certeza de que seria capaz de treinar a fera para, mais do que a fazer mansa, fazer da sua mansidão parecer a antiga fúria indomada. E a diferença entre o inverno em que começara por ser rebocado por um animal impetuoso e descontrolado até à primavera em que agora o via amansado residia não no ar feroz, antes genuíno e agora dissimulado, mas mais na possibilidade de agora ser ele a traçar caminhos e a definir destinos. E nisso residia toda a diferença. Uma diferença tão fundamental que se alguma vez pensasse que jamais a conseguiria alcançar nunca o infeliz animal teria conhecido mais do que o lado de dentro dos muros do seu jardim.
Desde esse dia era vê-lo então correr ladeiro abaixo, estimulando o companheiro para ostentar as suas garras e tensar a trela com esforço ensaiado, e assim se acercarem os dois da da varanda dela, bravos, e de seguida mergulharem por entre o túnel que esburacava a fileira de prédios para logo depois aparecerem do outro lado, sempre em passo valente, ele olhando de soslaio uma acidental aparição da miúda loura. E foram tantas as vezes que um dia ela lhe apareceu, e apareceu-lhe tantas vezes depois que, apesar da sua quase crónica timidez, acabou por a conhecer. Finalmente.
Há coisas que não importa explicar, muito menos naquela idade, se de paixões falarmos. O certo é que aquela afinidade que tanto lhe custara fazer acontecer sob uma chama platónica acabou por não se transformar em amor e, sem que desse por isso, nasceu ‘apenas’ uma sólida amizade. Naturalmente, terá deixado de precisar de continuar a passear o Yako por baixo da varanda ou junto ao túnel. Depois o Yako envelheceu e também ele deixou de ter motivos para o rebocar enfurecido pelos trilhos dos Olivais. Mais tempo passou, o Yako acabou por morrer e outras duas gerações de cães ainda lhe sucederam, perdurando a sua graça.
Ao último levei-o eu para uma piedosa morte, entravado de velhice, quase trinta anos depois do seu antecessor partilhar das minhas esquivas e tímidas investidas ao redor de uma miúda loura, provavelmente a minha primeira paixão. Ele morreu portanto há muito tempo e eu voltei naturalmente a haver-me com novas e antigas paixões. Ela entretanto casou-se. Comigo.
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1976,
muita sola gasta,
pelos trilhos dos olivais
Lançamento da Revista Criatura
Com poesia de
Ana Aleixo Lopes,
Ana M. P. Antunes,
António Ramos Pereira,
Beatriz Hierro Lopes,
Cláudia Santos Silva,
Cláudia Santos Silva,
David Teles Pereira,
Diogo Vaz Pinto,
Maria Sousa,Diogo Vaz Pinto,
Marta Caldeira,
Marta Chaves,
Nuno Araújo,
Rita Branco Jardim,
Sara F. Costa,
Susana Almeida.
É já na próxima sexta-feira, dia 18 de Abril, pelas 21h, que é apresentada pelo poeta Nuno Júdice esta nova publicação literária. Das vozes que ela traz só conheço as da Marta Caldeira e de José Carlos Barros (com quem partilhei a aventura da colaboração no suplemento do DN Jovem, numa pré-blogosfera juvenil, nos idos de 80) e a de Cláudia Santos Silva. São todos escritores de posts também. São vozes assim que faço frequentemente minhas, das quais me apodero, porque a poesia também dá nisso: num jogo de cabra-cega entre o poeta e o seu leitor. Na leitura de um poema abre-se um caminho, um percurso e esse trilho é em si mesmo, poesia.
Ortografia normal
FODA-SE! Ortogarfia normal... !!!!
(tá ali um gaijo na TV a falar de ortografia normal... ai cum cacete ou dois...)
(tá ali um gaijo na TV a falar de ortografia normal... ai cum cacete ou dois...)
segunda-feira, 14 de abril de 2008
sábado, 12 de abril de 2008
quinta-feira, 10 de abril de 2008
Tertúlia às Voltas na FBP - sábado,12 abril, 15 horas .. bute lá ?
Com a participação do nosso próximo convidado nas sessões da Tertúlia, o projecto dá mais um passo significativo na sua consolidação. Se até aqui foram apresentados e debatidos trabalhos únicos (uma biografia, uma compilação de crónicas), a obra de Carlos Vale Ferraz, que conta com a publicação de vários títulos, expande-se também ao argumento cinematográfico, abrindo-se desta forma um vasto campo temático de assuntos de possível debate. Para os menos atentos tentarei enumerar a seguir alguns dos temas mais representativos. 1- A Guerra Colonial e a instituição militar.Em virtude da sua actividade profissional (Oficial do Exército Português), Carlos Vale Ferraz dedica vários livros seus à actividade da guerra, ao modo como os homens nela se comportam ou transfiguram, ou à forma como ela os marcou para uma vida inteira. (“Soldadó”,” ASP de Passo Trocado”,” Os Lobos Não Usam Coleira”)2- A interminável ligação ao continente africano. A forma como o olhar do nosso inconsciente colectivo, em virtude de 5 séculos de ligação permanente, nunca se fechou, antes se foi transmutando ao longo da História. 3- A Escrita para cinema. A Relação entre o discurso literário e o discurso fílmico.Na sequência do êxito alcançado pelos seus livros, Carlos Vale Ferraz fez já várias incursões no mundo do cinema. O seu romance Os Lobos não usam Coleira foi adaptado para o filme de António Pedro Vasconcelos OS IMORTAIS. Foi autor do argumento do filme PORTUGAL SA de Ruy Guerra. Colaborou com Maria de Medeiros no argumento do filme CAPITÃES DE ABRIL. É autor do guião da série televisiva REGRESSO A SIZALINDA, baseada no seu mais recente romance, “Fala-me de África”.4- Literatura Portuguesa.Tem uma posição muito interessante em relação à literatura que se faz em Portugal quando opõe os conceitos entre um discurso erudito, exercício de estilo e, por outro lado, aquela literatura narrativa, que conta histórias…Eis aqui alguns dos possíveis objectos de discussão na próxima tertúlia. Espero sinceramente que possam comparecer, e que gostem do resultado final. Pela nossa parte tudo faremos para que assim seja. Até lá.
terça-feira, 8 de abril de 2008
Pouca terra, pouca terra, uuUuuUuuU.......
segunda-feira, 7 de abril de 2008
Comboios de uma vida
Proponho uma alternativa ao passeio a Belver, não sei qual o preço, mas em 1983 era uns enormes 13.500$00 (InterRail) e, sem ter a certeza de passar a fronteira em Hendaye que os Francius não queriam nada connosco (nem na CEE estávamos). Acrescia ainda o facto de termos que andar a fugir do Pica espanhol que queria cobrar um suplemento expresso para o qual ninguém estava interessado em gastar os seus parcos recursos.
Ah! Mas a chegada a França valia tudo, era o estrangeiro à séria, ruas limpas tudo com um ar organizado, uma língua verdadeiramente estrangeira, fiquei deslumbrado do cimo dos meus dezassete anos em que só conhecia Espanha.
Depois de Hendaye foi um mundo que se abriu, nunca mais fiquei o mesmo, a vontade e urgência em sair deste jardim à beira mar plantado todos os anos era irresistível. O Sud era uma porta para o mundo, a experiência total.
nota: esta placa abifeia de uma carruagem em Stª. Apólonia, é original
domingo, 6 de abril de 2008
Estes irmãos Baltazar não eram do bairro?
sábado, 5 de abril de 2008
sexta-feira, 4 de abril de 2008
Passeio a Belver de comboio e almoço no Restaurante "Quinta do belo Ver", dia 12 de Abril, sábado.
Nesta região o prato típico é a Lampreia, mas como nem todos gostam há muito mais opções, como o Sável frito com açorda e o ensopado de borrego.
Partimos da Estação do Oriente às 9:55 e chegamos a Belver às 12:50, daí seguimos num transfer até ao restaurante onde poderemos encher a pança por 21,50€ com um belo buffet (sem Lampreia) e 29.50€ (com Lampreia) com uma mesa de enchidos, mesa de queijos, um prato de peixe, prato de carne, sobremesas, cafés e bebidas incluídas.
Crianças até aos 4 anos é grátis
Crianças dos 4 aos 14 anos pagam 10€
Logo a seguir ao almoço podemos fazer uma visita gratuita até ao Castelo de Belver para digerir o almoço e o regresso fica marcado para as 19:27 com chegada a Lisboa às 22:11.
O bilhete do comboio é 13,30 Adulto, crianças e + de 65 pagam apenas 7€ (Ida e volta)
Os bilhetes de comboio têm que ser pagos com 3 dias de antecedência e o almoço é pago no local, por isso mafifestem-se os interessados...(mais tarde darei o nº de conta para depositarem o $ do comboio).
Estes preços só são possíveis por se tratar de um grupo, pelo que se não houver no mínimo 10 pessoas, o passeio não se realiza.
Nesta região o prato típico é a Lampreia, mas como nem todos gostam há muito mais opções, como o Sável frito com açorda e o ensopado de borrego.
Partimos da Estação do Oriente às 9:55 e chegamos a Belver às 12:50, daí seguimos num transfer até ao restaurante onde poderemos encher a pança por 21,50€ com um belo buffet (sem Lampreia) e 29.50€ (com Lampreia) com uma mesa de enchidos, mesa de queijos, um prato de peixe, prato de carne, sobremesas, cafés e bebidas incluídas.
Crianças até aos 4 anos é grátis
Crianças dos 4 aos 14 anos pagam 10€
Logo a seguir ao almoço podemos fazer uma visita gratuita até ao Castelo de Belver para digerir o almoço e o regresso fica marcado para as 19:27 com chegada a Lisboa às 22:11.
O bilhete do comboio é 13,30 Adulto, crianças e + de 65 pagam apenas 7€ (Ida e volta)
Os bilhetes de comboio têm que ser pagos com 3 dias de antecedência e o almoço é pago no local, por isso mafifestem-se os interessados...(mais tarde darei o nº de conta para depositarem o $ do comboio).
Estes preços só são possíveis por se tratar de um grupo, pelo que se não houver no mínimo 10 pessoas, o passeio não se realiza.
quarta-feira, 2 de abril de 2008
à(s)
07:25
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ases do pincel,
Azeite de oliva todo o mal tira
terça-feira, 1 de abril de 2008
S E N S A C I O N A L !
A administração deste blog acabou de receber uma proposta milionária para a compra do título.
Como foi o mais novo do Fulacunda a inventar o nome não sabemos se devemos aceitar essa proposta sem lhe oferecer pelo menos um rebuçado.
Qual é a vossa opinião?
Como foi o mais novo do Fulacunda a inventar o nome não sabemos se devemos aceitar essa proposta sem lhe oferecer pelo menos um rebuçado.
Qual é a vossa opinião?
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